Entrevista: Roger Franchini

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Por Ana Paula Laux – Romance policial ou romance de polícia? “Matar Alguém” (Editora Planeta, 2014), livro do paulista Roger Franchini, é um franco relato das ruas de São Paulo sob a ótica de um grupo de investigadores do Departamento de Homicídios. O crime organizado, a corrupção impregnada no meio e as baixas naturalizadas pelo caminho são alguns pontos marcantes do livro, bem como a linguagem cáustica e seca usada pelos personagens.

Natural de Sertãozinho (SP), Franchini tem uma trajetória crescente na literatura. Formado em Direito, em 2008 ele pediu exoneração como investigador na Polícia Civil de São Paulo e passou a se dedicar à escrita. Além de ‘Matar Alguém’, também escreveu ‘Ponto Quarenta – a Polícia Civil de São Paulo para leigos’ (Editora Veneta), e pela Editora Planeta lançou ainda ‘Toupeira – a história do assalto ao Banco Central’, ‘Amor Esquartejado’ e ‘Richthofen – o assassinato dos pais de Suzane’, este último em fase de pré-produção para o cinema, com roteiro do próprio Franchini e direção de Fernando Grostein Andrade.

O literaturapolicial.com falou com o escritor sobre os caminhos da literatura policial nacional, a relação com os policiais que leem suas histórias e os autores que mais influenciaram sua escrita.

 

1. Como você enxerga a literatura policial hoje no Brasil? Temos um cenário sendo criado ou isso ainda está longe de acontecer? Você diria que a literatura policial feita por autores nacionais é notada?
Em termos de mercado literário, ela ainda não está consolidada, se tomarmos como parâmetro aquilo que existe em outros países. Percebo um imenso nicho, um público que busca novidades, mas não conseguimos seduzir esse grande mercado que nos aguarda. Há episódios esporádicos de vendas em relação a algumas obras, cuja quantidade de exemplares negociados não pode ser chamada de “fenômeno”, se compararmos com autores nacionais de outros gêneros, como a autoajuda, a fantasia, biografia, etc. A ficção policial que tende a ser a mais popular no estrangeiro e de mais fácil inserção junto ao grande público, não tem o mesmo apelo no Brasil, quantitativamente falando. Atualmente o público da literatura policial está restrito à classe média urbana, e talvez por isso a maioria de nossos autores policiais seja dela egressa. Esse diálogo entre autores e seu público causa um impacto naquilo que você chama de “ser notada”. O escritor, por mais universal que deseje ser em seu discurso, só consegue falar sobre uma coisa: ele mesmo. É seu ponto de vista que está na boca de cada personagem, o ambiente social em que foi criado, sua formação moral e política. Mesmo quando tenta contrariar sua própria perspectiva em um exercício dialético – o que é bastante adequado para a evolução de um estilo − ele se torna o objeto que analisa, mas também é a o analisador, em uma esquizofrênica busca edipiana (para usar uma alegoria de investigação policial da literatura clássica). Nesse ponto, faço um mea culpa, já que é esse meu limite também, porque só posso falar daquilo que conheço, da realidade que está ao meu alcance cognitivo. E o leitor só se apega à obra se houver uma identificação de emoções. Mas se o discurso do escritor não atinge a alma daquele leitor específico, ele não é notado. Agora, imagine isso em um universo de milhões de leitores. Temos nos esforçado para estabelecer um gênero policial autêntico, mas ainda estamos presos a fórmulas de modelos estrangeiros para compormos o ambiente da investigação e, pior ainda, a vícios modernistas de observação da miséria pelos olhos da elite, o que cria obras socialmente superficiais, mas psicologicamente profundas, onde a subjetividade do autor limita o alcance da narrativa junto a um público que não compartilha dos mesmos fantasmas ou experiência de vida. No mais, não podemos chamar “escritor” como uma profissão. Não há sindicatos, associações ou entidades que possam defender os direitos trabalhistas de quem se lança a esse ofício. Obrigatoriamente, é necessária uma fonte de remuneração alternativa, o que enfraquece o mercado literário nacional porque a produção de livros em português acabava virando um hobbie que só pode ser executada pelo escritor caso isso não atrapalhe a sua profissão principal, aquela que lhe paga as contas.

 

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Os policiais se submetem à “Lei da Mordaça”… meus livros se tornam um canal de denúncia velada de tudo o que veem e são obrigados a fazer.

 

2. Em entrevista, você disse que o autor de literatura policial no Brasil não consegue manter um diálogo com o leitor, e que “fecha os olhos para o que está ao seu redor”. Você se considera um representante da literatura policial de realidade?
Essa entrevista me custou alguns amigos escritores, claro, por minha incompetência em me fazer entender de forma clara. Como disse, o limite da narrativa, para o escritor, é o alcance de seu universo de análise. Todos temos esse limite. O problema é quando esse limite não permite atingir um imenso mercado consumidor: o público da periferia é carente de histórias que sejam cúmplices de sua realidade de violência, abusos da polícia e descaso do Estado. Mas não acho que seja “culpa” de nossos escritores policiais, porque eles falam sobre o que lhe são pertinentes. E há público para tudo. Note que sequer conseguimos definir o termo “literatura policial”. Afinal, o que basta para existir um romance policial? Um bandido? Um crime? Uma investigação? Há romance policial sem polícia? Essas questões me perturbavam, porque eu era policial, mas não reconhecia em nossa literatura desse gênero o mínimo da realidade das polícias, da vítima e dos criminosos com quem trabalhava todos os dias. Mas aí conheci um ensaio fantástico de Ricardo Piglia, chamado “Formas Breves”, onde diz que o grande personagem do romance policial não é o policial, mas o detetive, pois este não pertence ao inferno burocrático dos sistemas penais, o que o deixaria livre para julgar e perseguir respostas para a relação entre Lei e Realidade. Por isso é comum vermos romances policiais onde, ao contrário do mundo real e concreto, quem investiga com sagaz habilidade são jornalistas, advogados, médicos, estudantes, pessoas que não estão autorizadas pelo Estado (e não possuem a técnica) para tanto e que só conhecem a polícia do lado de fora do balcão de atendimento. Por sua vez, o policial é quase sempre retratado como um serviçal despreparado, preguiçoso e mal remunerado, confundindo funções ostensivas e investigativas com naturalidade. Não é surpresa, portanto, que a narrativa é inexplicavelmente habitada por profissionais liberais brancos, cujos protagonistas sofrem dos males que atingem a pequena burguesia e seus rompantes morais, com ímpetos heróicos e apolíticos, como se estivessem imunes à corrupção cotidiana a que estão submetidos nossos agentes de segurança pública. Por causa dessa confusão, não me considero um “escritor policial”, muito menos fiel à realidade, porque assim eu estaria prestando um serviço jornalístico mal feito. No meu caso, quando me ponho a escrever, percebo que inconscientemente busco tentar entender o fenômeno Delito, porque ele é único momento em que um cidadão, intencionalmente, nega a civilização e o que temos de humano. E na órbita deste fato circula o desespero de quem dele participou, refletindo o absurdo kafkaniano dos sistemas de coerção social. Meu personagem é o policial brasileiro, convocado na miséria das classes pobres, o cara submetido a um sistema opressor, obrigado a limpar as ruas do lixo humano das classes pobres (ao qual ele mesmo pertence) para o tiozinho passear com tranquilidade; o cara que, para pagar suas contas, faz escolta pessoal do playboy na balada e serve de babá para cacainômano milionário; o sujeito que deve fazer vista grossa à corrupção do governo a fim de que não sofra represália; odiado pela mesma população pobre de onde saiu, e ignorado pela classe média enquanto profissional. Falo do investigador porque é esse, essencialmente, o homem da investigação. O delegado é uma figura estranha dentro do processo de investigação. A atenção dispendida pela literatura ao delegado de polícia é fruto do desconhecimento dos escritores sobre as relações de poder que influenciam o resultado de uma investigação.

 

3. Franchini, afinal, como é “matar alguém”?
É muito fácil. Qualquer um pode e tem potencial para fazê-lo. Basta ter o azar de, num momento de extremo nervosismo, encontrar uma arma de fogo ao alcance da mão. Você nem precisa fazer a mira com precisão. Basta apontar, fechar os olhos e deixar seu coração decidir o que fazer com o gatilho.

 

4. “Matar Alguém” (Editora Planeta, 2014) retrata a rotina de investigadores da Polícia Civil em meio a casos de corrupção e violência. Mesmo se tratando de ficção, já recebeu ameaças por abordar o assunto? Se sim, pode falar sobre isso?
Não. Pelo contrário. Os policiais se submetem à “Lei da Mordaça”, instrumento legal que os impedem de denunciar os desmandos e abusos cometidos pela instituição e pelo governo. Dessa forma, meus livros se tornam um canal de denúncia velada de tudo o que veem e são obrigados a fazer. Os bons policiais são apaixonados pelo trabalho que fazem, mas odeiam a instituição; um sentimento de amor e ingratidão pelo serviço, como são meus personagens.

 

 

 

5. O que te levou a ser escritor?
A vontade de contar histórias sobre pessoas abandonadas à sorte das instituições policiais. Tento fugir de um denuncismo barato mas, no Brasil, entendo ser impossível escrever romance policial, com policiais, sem citar a utilização do órgão − e de seus homens − como instrumento de manutenção do poder das elites, e a hipocrisia da classe média que sustenta ideologicamente esse sistema inócuo, ineficaz.

 

6. Quais autores mais te influenciaram na vida? E quais te decepcionaram?
Só se decepciona quem tem a expectativa idealizada da perfeição – algo incrustrado em nossa cultura cristã/platônica. Mesmo os melhores escritores, como todo ser humano, também são suscetíveis a instabilidades, instantes medianos, até medíocres. Sou muito apegado à algumas novelas russas do século XVIII, mas nem tudo ali é digno de citação. Não dá para escapar de Dom Casmurro e Brás Cubas, além de uma dúzia de magníficos contos de Machado de Assis. Nelson Rodrigues eu conheci de uma forma imunda e crua, ainda moleque, através do movimento da pornochanchada. Só depois, quando adulto e tendo contato com suas peças teatrais, entendi a genialidade que havia em meio à putaria daquelas personagens que tanto me fascinavam na infância. Naquele momento, a pornografia era algo secreto e de difícil acesso, e os filmes baseados em suas obras eram o que havia de mais próximo (e proibido) do inalcançável sexo.

 

7. Você foi um dos primeiros policiais a usar a internet para discutir questões de segurança pública e da polícia. Pode falar mais sobre a experiência como blogueiro com o Cultcoolfreak? O hábito de escrever no blog te incentivou a escrever romances?
Meu primeiro livro, o “Ponto Quarenta – a polícia para leigos” (relançado em abril deste ano pela Editora Veneta) é parcialmente a compilação das histórias do meu antigo blog. Em 2004 eu trabalhava em uma cidade do interior, e nossa delegacia havia ganhado de um comerciante local um computador e ponto de internet discada. Surgia naquele instante o lance dos “blogs”, que ninguém sabia direito o que era. E eu tive uma namorada na faculdade que era entusiasta dos blogs, que me convenceu a abrir um. Entre crônicas sobre meu cotidiano como investigador de polícia, eu permeava com histórias pessoais, e aos poucos outros policiais começaram a se tornar leitores assíduos. Dali a pouco surgiu a tal da “blogopol”, policiais que falavam sobre segurança pública em seus blogs, denunciando os desmandos que sofriam no cotidiano. Ganhamos um movimento com estilo e cara própria; mas não durou muito tempo. Logo os órgãos policiais calaram com punições administrativas os policiais mais sinceros, remanescendo poucos na atividade. Em 2008, quando sai da polícia meu blog ainda estava no ar, mas queria me desintoxicar daquilo tudo. Eu precisava renascer como cidadão desarmado, e as histórias do Cultcoolfreak me traziam lembranças nem sempre agradáveis. Foi então que tive a ideia de compilar as melhores crônicas e adaptá-las para a forma de um romance policial clássico, com narrativa linear, protagonistas, começo, meio e fim. Ele, sem dúvida, foi meu melhor instrumento para me entender alguém com leitores.

 

8. Na última década, séries policiais como CSI e Sherlock BBC viraram uma febre na televisão. Você tem alguma favorita? O que achou da série nacional “Dupla Identidade”, que retratou a caçada de um serial killer pela polícia?
Gostei do “Dupla Identidade”. A qualidade dos roteiros policiais do audiovisual brasileiro só vem crescendo. Embora eu tenha críticas quanto ao conteúdo, dramaticamente ele foi apropriado ao que o público da Rede Globo esperava ver. Mas não me levem a sério. Sou o homem que acha “House of Cards” um troço muito chato.

 

9. Quais são seus próximos projetos? Já pode revelar algum pra gente?
Atualmente estou trabalhando na adaptação do meu livro “Richthofen – o assassinato dos pais de Suzane” para o cinema, e por isso fico em dívida com a literatura. Mas espero logo voltar aos livros. Escrever romances é um prazer do qual não posso me furtar.

 

10. Se você pudesse levar 3 livros para uma ilha deserta, quais seriam?
Três livros que me ajudassem sobreviver e a construir jangadas para sair de lá.

 

(Imagens: Júlia Aguiar, divulgação)

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