Jogo de damas, de Myriam Campello

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Por Rogério Christofoletti – O que você faria se um pit-bull estraçalhasse sua filha de quatro anos numa pracinha da cidade? A promotora Júlia, mãe da garotinha em questão, tem a resposta na ponta da língua. “Não vai ficar assim”. O leitor também. Não fica do mesmo jeito, após consumir as 240 páginas de “Jogo de Damas”, excelente romance de Myriam Campello.

O livro me chegou tardiamente, já que foi lançado há cinco anos pela Língua Geral. De imediato, me apaixonei pelo volume, quase um pocket book, caprichosamente editado: tipologia elegante, papel nobre, capa instigante. Fosse apenas pelo acabamento artístico já teria valido a árvore que custou. Mas não. A exemplo do que encontramos nas suas páginas, o que interessa é o que se passa dentro, no abismo interior dos personagens.

Uma tragédia banal dos nossos dias – alguém se descuida e uma fera urbana ataca um indefeso – serve à autora para fazer um inventário do nosso sentimento mais atroz: o ódio. Sim, Jogo de Damas é um livro de crime, um suspense com busca e reviravolta no final, mas sobretudo uma história de ódio, muito ódio. De forma irônica, é justamente quem deve promover a justiça que se vê ansiando por fazer justiça com as próprias mãos. “Seis meses depois da morte de Ana eu continuava um vago conjunto de partes desunidas”, ressente-se a personagem que nos conduz por um labirinto quase infinito de feridas abertas pelo que podemos chamar de “a maior dor”. A de perder um filho.

Estamos ao lado da mãe devastada pela perda, experimentando um luto que é atacado pelo ódio, como a ferrugem que corrói o portão. Ninguém sabe quem é o dono do cão que barbarizou a pequena Ana, e isso faz com que Júlia não tenha um alvo definido, mas uma ideia bem nítida de vingança. Não importam mais os princípios, “é preciso revidar”.

Mas não se joga damas sozinho. É preciso um parceiro, um oponente ou cúmplice. Daí que Myriam Campello coloca em cena a misteriosa Helena, psicóloga que viveu num orfanato e que depois foi criada pela prima rica de sua mãe. Como rezam as regras, é um movimento por jogador. Assim, os focos narrativos se alternam e flashbacks ajudam a recompor os passados das personagens e daqueles que os cercam: o policial aposentado que deixou a bebida, a tutora amante das artes que está próxima da cegueira, os casamentos desfeitos, as mágoas tatuadas, e os cadáveres que cada um traz consigo.

De forma precisa, a tensão permanece ao longo de toda a história, com poucos momentos de descompressão. O suspense respira na nuca do leitor, frente a uma prosa de forte expressão e uma narrativa polida, com alta octanagem literária. O gosto amargo do início permanece e azeda a boca, ao final.

Não se trata de uma vingancinha à toa. Mulher vivida, Myriam Campello gira cuidadosamente a tramela da porta que prende os sentimentos mais recônditos de Júlia. Pela fresta, nos deparamos com a terra arrasada e o solo calcinado. Myriam conhece os sentimentos humanos, Júlia se assombra com os seus próprios, e o leitor não para de virar as páginas. Econômica, a autora parece vir da mesma tradição de Graciliano Ramos, com a escrita sem gorduras, a aridez com que esculpe seus personagens e a crueza com que os expõe. Crueza ou crueldade?

Myriam Campello está longe de ser uma iniciante. Começou há mais de quarenta anos, e Cerimônia da Noite deu a ela uma estreia premiada. Tradutora de autores como Virginia Woolf, Stephen King, Georges Simenon e Marguerite Yourcenar, tem absoluto domínio das palavras e de seu peso. Parecem ser escolhidas com base em dois critérios: métrica e sentido lírico. Na condição de escritora, deita sobre as páginas um texto inteligente, com frases curtas e bem cortadas. Algumas trazem verdades incômodas, como: “Acertar contas é o que nos sobrou, esse pequeno orifício da alma por onde respirar” e “A perfeita dor é igual à perfeita bala”.

Cada um de nós pode atestar que Júlia tem motivos para odiar, que na situação dela, é fácil destilar o fel. Pode ser. O ódio momentâneo é até contagioso. Perigo é quando ele martela o coração por mais tempo. Se você já odiou assim, sabe do que estou dizendo. Se não, leia Jogo de Damas para visitar esse porão escuro.

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damasTítulo: Jogo de Damas
Autora: Myriam Campello
Páginas: 240
Editora: Língua Geral
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SINOPSE: Ana, filha de Julia, com 4 anos é estraçalhada por um pit bull numa pracinha. Em função desse ataque, Ana morre. É assim que começa o romance de Myriam Campello, Jogo de damas: impactante, traumático e violento. Aos poucos, da própria dor da personagem Julia, que perdeu a sua filha, vai nascendo o desejo de vingança pelas próprias mãos. “Não vai ficar assim”, é a resposta de Julia às armadilhas da vida. Trata-se aqui da antiga lei dente por dente, olho por olho, ou de uma tentativa de redenção por meio da vingança?

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1 comentário em “Jogo de damas, de Myriam Campello”

  1. Paloma Lenzi da Silveira

    Realmente! Desde o momento que tive contato com esse livro senti a riqueza dos detalhes e dos sentimentos que me fizeram entrar nesse mundo criado pela Myriam Campello. Fiquei profundamente apaixonada e intrigada com o desenrolar desse romance e acho que dar 5 estrelas é pouco demais. <3

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