Cabo de Guerra, de Ivone Benedetti

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Por Rogério Christofoletti – Descobrir jovens talentos literários é muito bom, mas ser conduzido pela história por mãos maduras e seguras provoca uma experiência de leitura única. Os personagens se mostram multidimensionais, os cenários têm mais profundidade de campo e as circunstâncias nunca são simples. “Cabo de Guerra”, de Ivone Benedetti (Boitempo, 2016) é um exemplo vibrante disso. Muito por conta da trajetória da autora, experiente tradutora e escritora reconhecida.

Em 2010, seu “Immaculada” foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, o que despertou interesse de parte da crítica. “Cabo de Guerra” não é só mais um atestado da qualidade literária de Ivone, mas um mergulho profundo na maior ferida política brasileira: a ditadura militar de 1964-1985.

De forma inusitada, acompanhamos intimamente o percurso de um traidor. Com uma sinceridade surpreendente, o protagonista narra como mudou de lado, deixando a militância clandestina de resistência para ser primeiro um infiltrado e depois um agente da repressão. É o que se chamava à época de “cachorro”, animal a serviço do regime.

A prosa elegante cobre um período longo, que vai do final dos 60 a 2009, num vai-e-vém narrativo que pode desorientar o leitor menos concentrado. Nem sempre, somos avisados de um flashback, e para aumentar a vertigem, a mente do protagonista lhe/nos prega peças: desde criança e por causa de um trauma familiar, ele sofre de terríveis alucinações.

É paradoxal que esse período histórico tão importante para o país seja também tão poucamente retratado pela literatura. Bernardo Kucinski, que também já retratou a época em “K.” e “Você Vai Voltar Pra Mim”, chama de “diminuta” a estante que comporta esses títulos. Ele tem razão. E não é exagerado dizer que “Cabo de Guerra” passe a ocupar a partir de então um lugar privilegiado nessa prateleira. A escrita precisa e a carpintaria narrativa contribuem muito para isso. Mas outros três fatores merecem atenção: originalidade, ritmo e coragem.

A escolha de um traidor para revisitar os anos de chumbo faz com que “Cabo de Guerra” alcance um patamar único na medida em que coloca os leitores-testemunhas numa posição estratégica. Assim, ora estamos num aparelho da guerrilha, ora sabemos das próximas emboscadas da repressão. O título da obra aponta para uma tensão moral do protagonista não tão contrastante quanto se pode imaginar. Afinal, não está dividido entre lutar contra a ditadura e entregar seus companheiros. Não entrou na luta armada por convicção e não aderiu ao regime por esclarecimento. Nas duas situações, foi levado, cooptado, abduzido por comodismo ou inação.

À medida que o tempo passa, os sentimentos e as frustrações emergem com mais força e descobrimos camadas insistentes de remorso e solidão. A corda fica mais retesada e é perceptível como Ivone mantém a tensão até as páginas finais. Prenda a respiração nas duas últimas páginas.

Com ritmo seguro, devoramos um romance cuja centralidade efetiva está na consciência, essa nuvem que ajuda a nos constituir. O narrador sabe que contribui para a queda de vários colegas, que foram torturados, massacrados e mortos, e isso corrói parte do que chamamos de caráter. Sabe que é um assassino, um delator, um pária. Como chegou a isso e por que está entrevado numa cama 40 anos depois são os dois mistérios do livro.

O terceiro fator que merece atenção é, para mim, uma coragem narrativa. Seria natural e aceitável que Ivone Benedetti contasse uma história da ditadura pela perspectiva de quem resiste a ela, afinal a autora militou nessa condição na juventude. Mas a própria Ivone marca uma distância grande entre o vivido e o narrado, entre o passado e a ficção sobre esses tempos idos. Adotar a perspectiva de um protagonista “cachorro” não me parece só uma decisão estética, que funcione melhor para a urdidura esperada, e que renda mais conflitos e subtramas. É um ato de desprendimento digno dos mais corajosos narradores. Corajosa também foi a editora Boitempo, reconhecida pelo catálogo com assento político à esquerda. A casa poderia ter declinado e desviado daqueles originais, mas foi adiante.

Com o lançamento, cresce um tantinho mais a escassa bibliografia ficcional brasileira sobre essa época. A memória agradece. O leitor, por sua vez, tem a chance de entrar na cabeça desse personagem tão intrigante, desprezível e desconhecido. É incômodo vê-lo atravessar os anos, as fases da ditadura, contornando os cadáveres, esquivando-se nas sombras, limpando as mãos sujas de sangue. Apesar do mal estar, certas histórias precisam ser contadas. Até porque dias terríveis não anunciam sua volta com grande alarde. Alegórica ou profética, a literatura é também uma forma de aviso.

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SOBRE O LIVRO

caboTítulo: Cabo de Guerra
Autora: Ivone Benedetti
Páginas: 304
Editora: Boitempo Editorial
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SINOPSE – Finalista do Prêmio São Paulo de Literatura de 2010, Ivone Benedetti lança pela Boitempo seu segundo romance, o arrebatador Cabo de Guerra, que invoca fantasmas do passado militar brasileiro pela perspectiva incômoda de um homem sem convicções transformado em agente infiltrado. No final da década de 1960, um rapaz deixa o aconchego da casa materna na Bahia para tentar a sorte em São Paulo. Em meio à efervescência política da época, que não fazia parte de seus planos, ele flerta com a militância de esquerda, vai parar nos porões da ditadura e muda radicalmente de rumo, selando não apenas seu destino, mas o de muitos de seus ex-companheiros. Quarenta anos depois, ainda é difícil o balanço: como decidir entre dois lados, dois polos, duas pontas do cabo de guerra que lhe ofertaram? E, entre as visões fantasmagóricas que o assaltam desde criança e a realidade que ele acredita enxergar, esse protagonista com vocação para coadjuvante se entrega durante três dias a um estranho acerto de contas com a própria existência. Assistido por uma irmã devota e rodeado por uma série de personagens emersos de páginas infelizes, ele chafurda numa ferida eternamente aberta na história do país.

 

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