Meu amigo Dahmer, Derf Backderf

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No coração das trevas – É natural e esperada uma certa dose de curiosidade mórbida, né? Embora evitemos admitir, uma parte sombria de cada um de nós insiste em saber de detalhes escabrosos de um crime ou quer ver imagens chocantes de cadáveres e coisas pútridas. Talvez por isso massacres, tragédias e psicopatas nos atraiam ainda. É um misto de fascínio e repulsa, que nos faz querer explicar as razões de um cidadão aparentemente normal acumular corpos em casa e, depois, devorá-los. Tendemos a acreditar que dois atalhos nos ajudariam a compreender o horror: adentrar a mente labiríntica do criminoso ou vasculhar o seu passado. O cartunista Derf Backderf optou pela segunda via em “Meu Amigo Dahmer”, onde conta parte do seu convívio no ensino médio com um dos mais famosos assassinos seriais da história, Jeffrey Dahmer. E a jornada a que Derf nos conduz é escabrosa em muitos aspectos…

Acompanhamos os passos de um Jeffrey Dahmer extremamente tímido pelos corredores de uma escola superpopulosa do interior dos Estados Unidos. O cenário é conhecido, apoiado nos mais desgastados clichês cinematográficos: valentões derrubam livros dos fracotes, adolescentes fazem de tudo para alcançar popularidade, esquisitões são humilhados sem qualquer piedade. Dahmer é um deles. É caladão, desajeitado, vive sempre solitário. Seu comportamento destoa dos demais, embora ele busque um isolamento que quase o invisibilize. Para muita gente, ele não é ninguém mesmo, alguém a ser esquecido. “Era o cara mais solitário que eu já tinha visto”, lembra Derf no começo de sua história. O tempo vai mostrar que o sujeito pacato e morno pode se tornar a encarnação de nossos pesadelos mais sórdidos, a expressão da maldade. A graphic novel de Derf não vai tão longe. Então, leitor, não espere por um espetáculo contínuo de sangue, sexo e atrocidades.

 

O que temos em mãos é um capítulo da vida de um homem infame, uma pretensa origem do mal, a exemplo do que vemos em “Bates Motel”, a série televisiva que nos mostra um Norman Bates ainda jovem, bem antes do que se passa em “Psicose”, o clássico de Alfred Hitchcock.

 
Desfilam pelos quadrinhos do livro os hormônios e dramas juvenis, o abandono familiar num lar conturbado, o alcoolismo na adolescência e o bullying nosso-de-cada-dia. Dahmer não tem amigos. Nem mesmo o autor da graphic novel, como se percebe a todo momento. De sujeito esquisito e ignorado, Dahmer passa à atração de um grupo de rapazes apenas por suas imitações de retardados. Ele contorce o corpo, gagueja, revira os olhos, berra, simula ataques e convulsões. Eles riem. Ele se sente o centro das atenções e, quem sabe?, uma forma de se integrar socialmente. Criam informalmente um Fã Clube Dahmer, e seus trejeitos são repetidos em outras ocasiões como piadas internas. Dahmer parece ter encontrado um lugar naquele bando, mas é pura ilusão. Ninguém ali é seu amigo. Não frequentam sua casa, não o convidam para sair, não conversam honestamente com ele. Por isso, não posso deixar de achar o título do livro falso e oportunista. Derf não foi um amigo, embora tenha convivido com ele e frequentado lugares comuns numa época. Foi um colega, um contemporâneo. Dahmer atuava como mascote da galera, uma espécie de bobo da corte que aceitava se comportar em público de uma forma que todos os outros se envergonhariam. Neste sentido, não se sinta mal, leitor, em nutrir alguma pena por Dahmer. Não é fraqueza de caráter, é empatia.

 

 

Empatia, aliás, que Derf critica faltar no “amigo”. Ao contar atitudes cruéis e ao opinar mais de uma vez que Dahmer deveria ter se matado antes de se tornar um serial killer, Derf também se esquece que ele mesmo e os demais não foram nada empáticos naqueles anos de ensino médio. Não estenderam a mão e nada fizeram para acolher o loiro corpulento que afundava no coração das trevas. Sim, Derf, faltou amizade, cara! Amigos apoiam; amigos não se encontram dez anos após a formatura para tripudiar dos verdadeiros amigos…

Não foi para honrar sua amizade que Derf nos contou essa triste história. O projeto surgiu tão logo soube da prisão do “amigo”, em 1991. (Se você não se lembra, Dahmer foi acusado, julgado e condenado por matar, esquartejar e devorar pelo menos 17 homens. Quando a polícia invadiu sua casa, encontrou pedaços de corpos guardados na geladeira, alguns apodrecendo em outros locais e outros prontos para serem cozidos. Como pena, pegou 15 prisões perpétuas, mas foi assassinado na cadeia dois anos depois, em 1994.). Ainda na década de 1990, Derf produziu uma história curta, de 24 páginas, e a publicou num formato de revista, tornando-se um sucesso underground. Vinte anos depois, o cartunista mergulhou em arquivos policiais, entrevistou amigos e parentes, e fez uma extensa pesquisa complementar. “Meu amigo Dahmer” foi lançada novamente em 2012, atraindo os olhares de um público maior e a atenção da crítica especializada, ganhando inclusive prêmio no Festival de Angoulême, um dos mais celebrados da Europa.

 

“Meu amigo Dahmer” foi uma obsessão e uma jogada oportunista de Derf, mas também é preciso reconhecer que o autor tinha uma “perspectiva singular” para contar esse capítulo da história do homem que passou a ser conhecido como o Canibal de Milwaukee. Este é seu maior trunfo: ter tido a sorte (?!) de ter convivido com aquele rapaz soturno que usava óculos com aros largos. Neste sentido, a pesquisa de apoio poderia ter sido feita por qualquer jornalista impertinente. Os desenhos ainda cheiram à linhagem independente de Robert Crumb, e a paleta preto e branco reforça essa filiação. O traço de Derf evoluiu, é verdade, conforme se pode comparar com a primeira versão, parcialmente disponível na bela edição da DarkSide Books. Aliás, o volume tem capa dura, encadernação caprichosa e tratamento gráfico equilibrado. Além da história em quadrinhos, oferece materiais extras que detalham as fontes de pesquisa e que explicam algumas escolhas do artista. Seria impecável não fosse um detalhe: as notas não estão indicadas nos quadrinhos ao longo das páginas. Como a seção de notas fica no final do volume, isso obriga o leitor a voltar aos trechos mencionados, quando ele poderia ter consultado as referências em meio à leitura.

O traço ligeiramente infantil e o ambiente de comédia de sessão da tarde ficam apenas na superfície. O leitor não ri, afinal, é a história de alguém que se notabilizou pelo assassinato em série, pela necrofilia e pelo canibalismo. Dahmer é quase sempre retratado com um rosto que mais parece uma máscara de pedra: frio e sem emoções. É sabido que psicopatas e sociopatas não alimentam compaixão nem empatia. A caneta de Derf nos dá mais pistas: o corpo torcido do protagonista reflete uma personalidade tensa e um senso distorcido da realidade. No início da história, a estrada que Dahmer percorre oferece diversas bifurcações. É como se Derf nos mostrasse que havia outros caminhos a seguir, que a história poderia ser diferente. Tragicamente, não foi.

“Meu amigo Dahmer” alcança uma estatura de romance gráfico (graphic novel) que funciona bem como uma biografia não-autorizada e propositalmente incompleta. Naquelas quase 200 páginas, há uma honestidade assombrosa do autor. Ele não se isenta de fazer parte da trupe que usava Dahmer, que o humilhava em outros momentos e que se divertia com suas esquisitices. Parece não haver nenhum problema nisso, afinal, eram os anos 70 e onde estavam mesmo os adultos?, pergunta-se o autor cinicamente. Como se a crueldade ritualística dos adolescentes não engrossassem o caldo de frustrações, angústias e perversidades que trazemos em nossos corações…

 

“Meu amigo Dahmer” me fez pensar menos sobre o futuro do odioso personagem e mais sobre a natureza da amizade. Me fez imaginar como amigos verdadeiros podem transformar não só o nosso cotidiano, mas mudar e salvar as nossas (e outras) vidas.
 

Emblemática, a capa define esplendidamente esse controverso personagem. Dahmer está na sala de aula cercado de seus colegas de classe. Eles aparecem curvados sobre os livros abertos. Dahmer tem os braços cruzados e nos encara seriamente. Sua mesa está limpa e ela não segue nenhuma fileira. No traço de Derf, personagens extraordinários (até os mais cruéis) são pontos fora da curva, não se alinham e não se enquadram…

Título: Meu amigo Dahmer
Autor: Derf Backderf
Ano: 2017
Editora: Darkside Books
Páginas: 288
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SINOPSE – O livro traz o perfil do psicopata Jeff Dahmer quando este ainda era um aluno do ensino médio. O autor do livro foi seu colega de turma nos anos 1970, e conviveu com o futuro “canibal de Milwaukee” com uma intimidade que Dahmer talvez só viesse a compartilhar novamente com suas vítimas. Juntos, Derf e Dahmer estudaram para provas, mataram aula, jogaram basquete. Os dois tomaram rumos diferentes, e Derf só voltaria a saber do amigo pelo noticiário, anos depois. Em 1991, os crimes de Jeffrey Dahmer vieram à tona: necrofilia, canibalismo e uma lista de pelo menos 17 mortos, entre homens adultos e garotos. O primeiro assassinato teria acontecido meses após a formatura no colégio. Além de remexer nos seus velhos cadernos e álbuns de fotografia, Derf consultou seus amigos de adolescência, antigos professores, os arquivos do FBI e a cobertura da mídia após a descoberta de seus crimes antes de roteirizar MEU AMIGO DAHMER.

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4 comentários em “Meu amigo Dahmer, Derf Backderf”

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