A Forma da Sombra, de Fernando de Abreu Barreto

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Por Josué de Oliveira – Sempre que preciso tomar o metrô, sinto certo desconforto. Um conjunto de elementos contribui para isso: as plataformas que terminam abruptamente, os trilhos escuros se estendendo até onde alcança a vista, o som algo animalesco produzido pelas locomotivas, os túneis que surgem como bocarras feitas de concreto. As estações têm uma espécie de respiração própria. Os vagões alinham-se à plataforma, cospem passageiros, recebem outros tantos, e lá dentro mãos buscam um lugar para se agarrar enquanto todos são levados para dentro da escuridão, viajando através das veias da cidade.

O protagonista de “A Forma da Sombra” (Caligo, 116 páginas), romance (novela?) de estreia do carioca Fernando de Abreu Barreto, é condutor do metrô. Para ele não há desconforto, e sim um forte senso de pertencimento. Passa seus dias cruzando os túneis, longe da luz. Nos momentos de folga, também se dirige para lá, e passeia em meio às ratazanas e à sujeira, familiarizando-se com a geografia, os respiradouros, os bueiros que conectam aquele mundo ao de cima. Sente aversão ao sol e todas as janelas de seu apartamento são pintadas de preto. Sente-se à vontade apenas na penumbra. Sempre foi assim.

“A Forma da Sombra” é, em sua essência, uma história de autodescoberta. Narrado em primeira pessoa pelo condutor (cujo nome jamais é revelado), a breve narrativa, dividida em capítulos curtos, o acompanha em suas tentativas de entender quem ou o que é, sua natureza estranha e psicopata. Nessa jornada, cruza com personagens igualmente inominados e situações que o colocam à prova, revelando um violento instinto de sobrevivência.

A característica que mais chama a atenção na obra é a escrita de Fernando. Concisa, pouco preocupada em chamar atenção para si. Os capítulos, por vezes ocupando menos de uma página, são a prova de que não é necessário escrever muito para dizer muito. O autor demonstra segurança em sua escolha, o que dá ao livro unidade e um ritmo peculiar. A narração é precisa, sem excessos, conferindo voz e identidade ao protagonista, cujos pensamentos e ações cada vez mais perturbadores vamos acompanhando.

A construção da subjetividade do condutor, essencial para que o leitor compre a ideia do livro, também merece destaque. Podendo ser encaixado no subgênero dos suspenses psicológicos (caso alguém queira aplicar categorias), onde importa menos o crime e a investigação e mais a exploração da psicologia do criminoso. “A Forma da Sombra” revela sua força nos capítulos em que o protagonista reflete sobre sua condição, entendendo-se cada vez mais como um tipo diferente de ser – mais distante do humano, mais próximo do animal. São momentos em que o leitor é convidado a entender o que se passa na mente do monstro (que é como as demais pessoas o veriam), suas premissas, o impulso por trás de seus ataques. O que para a sociedade em geral seria visto como psicopatia é para o condutor busca por significado.

Ao manter o ponto de vista do condutor sempre no centro, Fernando faz do leitor um expectador inerte de sua tomada de consciência e de seus atos assassinos, vistos por ele como completamente justificáveis. O aprofundamento na mente do protagonista faz com que realmente nos importemos com sua busca e seu destino. A trama avança e ganha contornos de jogo de gato e rato quando um policial (referido como “o detetive”, somente) entra em cena para investigar um dos crimes cometidos pelo condutor. O embate entre os dois confere uma nova dinâmica ao livro, os acontecimentos ainda mais imprevisíveis e testando a lealdade do leitor: torcerá ele pelo sucesso do investigador ou pela vitória do criminoso?

A narrativa retorna diversas vezes aos túneis do metrô, que funcionam sobretudo como metáfora para a natureza ainda incompreendida e oculta do protagonista. Ali, longe das vistas de todos, ele pode ser verdadeiro consigo próprio – e, não à toa, lá comete seus crimes. Esses locais onde reina a escuridão são importantíssimos para a lógica do livro e Fernando é hábil em criar sequências ali situadas, transmitindo bem as sensações de estranheza e isolamento causadas pelo local.

Mostrando-se fiel à construção de seu protagonista, o autor recusa as decisões fáceis e segue o caminho que a narrativa aponta organicamente como o mais apropriado, mesmo sendo o menos confortável para o leitor. Fernando leva a história ao ápice dando-lhe direções concretas, mas tem a boa sacada de não dar todas as respostas. O resutado é um final aberto de raro equilíbrio entre o que é mostrado e o que fica oculto, que reflete os conceitos apresentados ao longo da narrativa e respeita a inteligência do leitor. Demonstração final da segurança do autor estreante, que ainda tem muito a mostrar.

Quanto a mim, vou evitar ao máximo passar perto do metrô.

 

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Título: A Forma da Sombra
Autor: Fernando de Abreu Barreto
Editora: Caligo
Páginas: 116
Ano: 2014
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SINOPSE: Romance de estreia de Fernando de Abreu Barreto, “A forma da sombra” carrega todas as características que são marcantes no autor: o texto direto e cru, o controle da tensão e a criação de personagens sólidos e profundos. Thriller ágil, que envolve o leitor nas primeiras páginas, o livro rompe a barreira do gênero.

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2 comentários em “A Forma da Sombra, de Fernando de Abreu Barreto”

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