O assassinato no chuveiro que ainda nos perturba

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Por Luciana da Cunha – O banho de uma mulher é abruptamente interrompido por uma figura não identificada que, sem aviso ou pudor algum, começa a esfaqueá-la. A cena dura três minutos e está em preto e branco, mas os gritos, a trilha sonora e a substância escura que escorre pelo ralo marcaram a história do cinema até os dias de hoje. Até quem não viu o filme sabe que eu estou falando de Psicose (1960), do mestre do suspense Alfred Hithchock. Mas aqueles que assistiram sabem que este é apenas um trecho (o mais aterrorizante, obviamente) de uma história muito mais perversa.

Não vou recontar aqui tudo o que acontece na trama de Robert Bloch, adaptada para os cinemas, porque isso já é de conhecimento público – sério, se você ainda não assistiu, faça um favor a você mesmo e só continue a ler o texto depois de ter cumprido esta etapa. Feito? Então vamos lá.

O enigma a ser respondido em Psicose ainda é o acanhado dono do Motel Bates, Norman, o assassino de uma das cenas mais famosas do cinema. Ok, no filme já sabemos que ele assume a personalidade da mãe e chega ao ponto de vestir a própria pele dela. Mas o que ainda acende uma interrogação nas nossas cabeças é: como, depois de 56 anos do lançamento do livro, Norman Bates se mantém vivo na cultura pop?

O sucesso de Psicose foi estrondoso no início da década de 1960: tanto o público quanto a crítica ficaram fascinados pela trama que rompia padrões narrativos (matar a mocinha logo no primeiro ato é para poucos ainda nos dias de hoje) e forçava os limites da censura, com insinuações sexuais e uma violência dificilmente vista nas telas. Os métodos adotados pelo próprio Hitchcock durante a produção ainda são questionados e celebrados. Prova recente é o filme Hitchcock (2012), que dá conta exclusivamente dos bastidores de Psicose.

Tanto estrondo elevou muito os padrões e dificultou o trabalho de qualquer produção que quisesse se apossar do universo criado por Bloch. Duas décadas depois, o filme ganhou três sequências cinematográficas que acabaram esquecidas pelo grande público. Mesmo sem a mesma relevância, o universo de Norman Bates foi expandido e o personagem ainda se mantém como o segundo vilão mais relevante do cinema (perdendo apenas para Hannibal Lecter), de acordo com o American Film Institute. Sim, ele está na frente até do Darth Vader.

Pouco depois de revisitarmos a famosa cena do chuveiro com o filme Hitchcock, Norman Bates decidiu voltar por mais um tempo. Em 2013 a Universal lançou Bates Motel, um seriado disposto não apenas a reviver o universo de Psicose, mas a recriá-lo nos dias de hoje. Agora Norman Bates tem um iPhone e provavelmente uma conta no Facebook (pensa que legal seria o álbum de fotos de animais empalhados). Apesar disso, a história é anterior aos acontecimentos de Psicose, com um Norman adolescente que acabou de se mudar para uma cidade aparentemente perfeita. Pelo nosso histórico de derivados do filme de Hitchcock, a fórmula parece fadada ao fracasso, certo? Eu não teria tanta certeza disso.

Um dos principais trunfos de Bates Motel é mostrar a cara da ausência mais presente em Psicose: a mãe, Norma Bates. Interpretada por uma perturbada Vera Farmiga, a personagem parece ser a fonte de todos os problemas e soluções na vida de Norman. Claro, quem não acha importante a figura de uma mãe protetora no desenvolvimento do filho? Só que a relação Norma x Norman (só isso já é bizarro o suficiente) está cada vez mais perturbadora.

Já na primeira temporada percebemos que, depois de mãe e filho terem se mudado para a cidadezinha de White Pine Bay, a ideia de Norma é algo meio “ela e Norman contra o mundo”. Só que a superproteção da matriarca vai além do típico ciúme das potenciais namoradas do filho: em uma relação quase incestuosa, ela está cada vez mais perto de convencê-lo de que é a única mulher de quem o filho precisa.

Todo mundo que assistiu Psicose sabe no que isso vai dar, mas essa “construção” da personalidade de Norman é provavelmente a parte mais interessante de Bates Motel. A fórmula aproxima o nosso protagonista do verdadeiro assassino em quem Robert Bloch se inspirou para escrever o livro: Edward Gein, principalmente na relação mãe x filho. Na história verdadeira, a morte do pai de Gein não tem circunstâncias suspeitas como no caso de Norman, mas a relação com a mãe, Augusta, é praticamente a mesma. Plus: quando o irmão de Gein começou a criticar a influência destrutiva de Augusta ele foi encontrado morto em circunstâncias suspeitas. Em Bates Motel, o meio-irmão de Norman, Dylan, já demonstra sinais de desaprovação da relação dos dois. Será que devemos temer pela vida dele?

A caracterização de Norman Bates na série não poderia ser mais apropriada: Freddie Highmore tem aquele ar de bom moço, bom aluno e, principalmente, bom filho. Pra quem acha que a carinha do ator é familiar, trata-se do mesmo menino que nos encantou ao lado de Johnny Depp e Kate Winslet com Em busca da Terra do Nunca, além de ter interpretado Charlie na mais recente versão de A Fantástica Fábrica de Chocolate. A ideia de que aquele dócil garoto irá se tornar um dos assassinos mais famosos da indústria do entretenimento já é perturbadora o suficiente.

Além disso tudo, a própria cidade de White Pine Bay é uma atração: aquele local pacato e perfeito mostra a cada episódio que não é o que aparenta ser e que todos os cidadãos são, de certa forma, coniventes com a sujeira que mantém a economia do local. O roteirista Carlton Cuse não esconde que a inspiração para este ambiente vem da série Twin Peaks, série do início dos anos 1990 criada por Mark Frost e David Lynch.

A verdade é que ninguém está a salvo na série, nem a própria história de Psicose. Cuse faz questão de destacar que, apesar de ambientada nos acontecimentos do livro de Bloch, Bates Motel possui vida própria. Não se trata de um prequel, mas sim de um reboot. Além disso, a trama pode ir muito além dos acontecimentos de Psicose, conforme ele contou para a TV Guide: “Não se trata de um estudo comparativo com a literatura. Nós realmente estamos tentando desenhar o show para ser assistido pelos seus próprios méritos. Se você é um fã do filme original, você vai gostar de certas referências e homenagens… Mas nós tentamos evitar recontar a história do Hitchcock”.

Assim como o comportamento de Norman, o futuro da série é incerto em termos de dramaturgia. Percebemos um protagonista cada vez mais errático e perigoso. No final da temporada anterior ele esteve muito próximo de decretar o fim da própria mãe, apesar de toda a proximidade dos dois. Em relação ao futuro do sucesso da série, deve durar por mais algum tempo desde que os roteiristas continuem surpreendendo o público, que aumenta a cada ano. Se o objetivo de Hitchcock era causar desconforto, a equipe de Bates Motel está garantindo que o desconforto atinja novos públicos e permaneça por mais um bom tempo.

 

(Imagens: IMDB Cate Cameron, 1960 Paramount Pictures, 2014 James Dittiger)

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2 comentários em “O assassinato no chuveiro que ainda nos perturba”

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