Uma loucura toda minha: Andrea Camilleri

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Com quase 90 anos, o escritor e diretor teatral siciliano Andrea Camilleri é dono de um senso de humor meio pervertido, mas irresistível. E aquela transbordante afetividade dos italianos transparece não apenas na forma como vai traçando seus personagens, mas também como se relaciona com os amigos próximos ou distantes. Conhecemos melhor Camilleri por seu Comissário Montalbano, na hipotética Vigatta, sua invejável Adelina, suas namoradas tempestuosas, seus policiais tão gente, mais gente impossível.

Eis a característica mais admirável nos romances de Camilleri: a veracidade de seus personagens, de uma incrível clareza de traços, que mesmo o mais marginal, como o filho de Adelina em A caça ao tesouro, ou seu idiotizado e impagável Cattarela, em todos eles, vêm envoltos em tal dose de humor que os adoça, os humaniza, os embeleza. Chamar seu comissário de Montalbano é clara homenagem ao grande amigo barcelonês Manuel Vásquez Montalban, cujo detetive, Pepe Carvalho, tem um assistente gourmet e anão que lhe prepara pratos típicos, na tendência muito atual de a gastronomia ser parte essencial da literatura, embora Bram Stoker já a utilize (e bem!) em Drácula. Mas Montalbano tem Adelina, e o tradutor para o Português do Brasil tem tido o cuidado de colocar, no rodapé, a explicação de cada um de seus pratos – típicos, mas da cozinha siciliana, é claro. Tão típicos como os termos dialetais muitas vezes empregados, e que também necessitam de explicação.

Mas este último romance de Camilleri não é um dos de Montalbano. E foge ao que costumamos encontrar e talvez procurar nele. Mas as referências estão presentes, e são sempre sólidas, num universo composto por uma grande erudição. Ariadne e Giulio estão casados, e vivem um casamento que é só cumplicidade. Giulio é homem de recursos, e se dá o luxo de manter, por uma certa perversidade, a esposa bela, imoral, amoral, tão infantil e sem sofisticação que come com as mãos e urina na cama – por prazer, não por algum problema. Ela, porém, lhe esconde uma parte de si, e ele o sente, sem, no entanto descobrir o que seja.

Giulio, por um acidente, foi emasculado. É o segundo eunuco na vida de Ariadne, que talvez por essa capacidade de atender aos instintos básicos, consegue conviver tranquilamente com o fato. Giulio, porém, mais sofisticado que o anterior, percebe que o sexo faz falta na vida da esposa, e trata de introduzi-lo: toda quinta, na praia de Canetto, com rapazes de programa, e sob suas vistas. Voyeur? Talvez sim, talvez não: o ponto de vista é o dela, e não se manifesta claramente. E é quando Ariadne descumpre uma parte do trato, vai à praia sem Giulio, e se envolve com Mario, que não é um dos michês habituais, que vamos ter a complicação que dá sequência e razão de existir ao enredo.

A Marquesa de Casatti Stampa foi um ícone da moda – teria sido uma inspiração para Ariadne. A Marquesa usava cobras como colares, branqueava o rosto, escurecia muito toda a área dos olhos, criava tigres, e dizem que eram seus amantes que haviam morrido… Ariadne é puro instinto, e além de fazer exatamente o que lhe dá na telha – mas sempre tendo Giulio em mente, para não lhe desagradar – seria uma Marquesa sem a sofisticação que era característica daquela. A sinopse da editora também cita Santuário do Faulkner e O amante de Lady Chatterley, mas são referências também remotas: não há mais temas absolutamente originais. Se formos pensar em Faulkner, eu lhe daria maior proximidade com O som e a fúria, por causa dessa loucura e infantilidade que Ariadne controla e disfarça até certo ponto, e que a conduz ao todomeu, um recanto em que sua amiga Stefania a aguarda e premia… ou castiga. O Santuário, então, seria esse único lugar em que a loucura de Ariadne se deixa ver, no sujo, no amontoado, na falta de trato e cuidado, no sórdido, no sem controle, e que ela chama, para si mesma de todomeu, e que cria em todo lugar para onde vá, como criara em uma caverna, nos campos de sua infância.

O Todomeu é livro pequeno, de leitura rápida, e é óbvio que, para um homem culto como Giulio, impossibilitado de sexo por razões físicas (na literatura há outros personagens assim, como em O sol também se levanta, de Hemingway, ou Memórias de um vendedor de mulheres, do também italiano Giorgio Falletti), a relação do nome de sua mulher com o mito do labirinto e a lenda do Minotauro é irresistível. E, neste livro como nos outros de eunucos citados, as mulheres são ligadas a eles pela impossibilidade de realizar o desejo, e isso as torna infelizes e crueis, mas não menos a eles. E, na verdade, na verdade, vejo mais mistério em Giulio que em Ariadne, pois o fio condutor da narrativa a esclarece para nós. E ele permanece na sombra…

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todomeuTítulo: O Todomeu
Autor: Andrea Camilleri
Páginas: 140
Tradução: Ana Maria Chiarini
Editora: Bertrand Brasil
Este livro no Skoob

SINOPSE: Em O Todomeu, Camilleri põe em cena uma protagonista extraordinária: inquietante na sua pureza, assombrosa na luz que irradia. Nesse jogo irônico e refinado, o leitor é conduzido pelo labirinto de Eros até as profundezas do amor e da perdição, onde – como no mito de Ariadne – o Minotauro devora os desejos mais obscuros e inconfessáveis.

REGINA CARVALHO - De Florianópolis, SC.
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2 comentários em “Uma loucura toda minha: Andrea Camilleri”

  1. Muito bom, valeu! O cara é um craque e tem uma história bastante singular. A convite de Franco Zampari, alguns intelectuais italianos resolveram viver no Brasil (década de 50). Aqui chegando, fundaram o TBC (Teatro Brasileiro de Comédias). Entre eles, Adolfo Celi (casou-se com a Tonia Carreiro), Gianfrancesco Guarnieri (Eles Não Usam Blacktie) e outros. Andrea Camilleri também estava no grupo. Quando chegou ao aeroporto para embarque foi avisado que sua mãe não estava bem. Adiou a viagem para o dia de São Nunca. O que teria acontecido caso aqui chegasse? Teria dado à luz a Salvo Montalbano?

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