Pizzolatto não poupa o público em Galveston

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Por Rogério Christofoletti – Romances policiais não são os melhores lugares para se buscar esperança. Por lá, as pessoas são mortas, traídas, barbarizadas, e o crime parece ser o grande motor que faz o mundo girar. Bem, talvez na vida aconteça o mesmo, mas ancoramos nossas esperanças na certeza de que o mal que enxergamos nos romances policiais fique exilado naquele terreno baldio da literatura. Isso nos dá algum alento e seguimos vivendo.

Mas por que essa ladainha pseudo-filosófica no início desta resenha? Afinal, Galveston não é nenhum tratado sobre a moralidade humana e talvez até se possa duvidar de sua condição como romance policial. Bem, a natureza da minha preocupação está no fato de que, com Galveston, Nic Pizzolatto (Editora Intrínseca) nos oferece uma chance preciosa para pensarmos o bem e o mal numa perspectiva bastante crua. Não se trata de realismo, mas talvez de um certo derrotismo. O que pode nos levar a um cinismo perigoso, quase niilismo, aquela tentação de não acreditar em nada, e com isso, permitir que tudo se faça. Mas vamos com calma.

Pra começo de conversa, estamos tratando de um elogiado e premiado livro de estreia deste que vem sendo aclamado por público e pela crítica como um nome promissor da narrativa policial. Se você não ligou o nome à pessoa, Nic Pizzolatto é o criador e roteirista da série True Detective, da HBO. Em suas primeiras duas temporadas, a atração chamou a atenção ao apresentar duplas de investigadores desajustados, perversidade nas cenas dos crimes, crueza nos diálogos e nenhuma falsa esperança. Pizzolatto não poupa o público e não doura pílulas. Se for para levar um soco na boca do estômago, que assim seja.

 

 
Em Galveston, reconhecemos essa mesma disposição, o que me parece uma tremenda demonstração de respeito com o leitor. A ideia é simples. Roy Cady é um capanga que escapa de uma emboscada armada pelo próprio chefe. Daquele banho de sangue, arrasta consigo uma jovem prostituta, e juntos, fogem de New Orleans para Galveston, no litoral do Texas. Passam por bares imundos, hotéis decadentes, estradas cheias de sujeira e perigo. Encontram escroques de todo tipo e se metem em encrencas, enquanto tentam fugir de uma certeza: virão atrás de Roy para terminar o serviço.

As páginas avançam e o leitor percebe que ali ninguém presta mesmo. Ninguém. As vidas são cheias de fracassos, abandonos, perdas e danos. Todos carregam seus cadáveres, e todos querem sobreviver, mesmo que seja à base de cotoveladas. Isso cria um clima permanente de tensão, que o autor alimenta na medida certa. Para isso, a narrativa oscila entre o presente e vinte anos atrás, com maestria, sem tropeços. Como isso se dá de forma alternada nas seções do livro, o leitor vai se preparando para retornar ou avançar no tempo, o que lhe garante uma falsa sensação de controle da situação. Nada. Em qualquer um deles emergem das páginas as facetas carcomidas de uma realidade que não deveria se sustentar, não se tivesse um pinguinho de dignidade. Nada ali dura muito. Os personagens parecem não ter medo de perder o que têm, talvez porque sequer percebam o que trazem consigo e que poderiam considerar conquistas.

Roy é um tipo estranho, pouco confiável. É alto, cabelos compridos, chapelão e botas de caubói. Os caras do bando até o apelidaram de Big Country por causa desse jeitão caipira. É durão, castigado pela vida e que não espera ir muito longe. Seus pulmões estão sendo devorados por um câncer e o mundo não é nem um pouco gentil com ele. Apesar disso, tem lá no fundo, no fundo mesmo, seus valores. O leitor fica ao seu lado o tempo todo, mesmo quando ele pratica os atos mais desprezíveis e injustificados. Mesmo quando marcha decidido para o abismo. Mas que raio de herói é este?

Os puristas poderão contra-argumentar: se em Galveston todos ou quase todos são bandidos, se não temos um detetive clássico tentando fazer justiça, e se Roy foge da verdade sobre os motivos da sua armadilha quase mortal, não temos aqui um romance policial. Cadê a investigação?

Mas Nic Pizzolatto alcança seus resultados tomando caminhos insondáveis. Coloca uma fauna abjeta num habitat insalubre, cercada de condições de disputa pela sobrevivência. O oposição ancestral está lá. Mas o bem e o mal se apresentam igualmente lambuzados de graxa. Aos poucos, as atitudes dos personagens é que vão desmanchando essa opacidade. É assim que entrevemos um fiapo de esperança, que não chega a ser uma capacidade de redenção, mas já é alguma coisa.

Reviravoltas na trama, violência, um homem enfrentando seus demônios internos, um final eletrizante. Sim, temos uma trama policial em mãos, do tipo brutal, crua, hardboiled. Há muita testosterona no ar. A poeira cobre os móveis. O uísque desce rascante na garganta. O cigarro amarela os dentes e os nós dos dedos. O cinismo dá as cartas, e o niilismo tenta espiar quem está com as mãos mais cheias. Descansar em paz é apenas para quem abotoa o paletó? Olha, você sabe desde as primeiras páginas que “Galveston” não vai terminar bem. Mas talvez o furacão que se aproxima da cidade sopre frescor em nosso rosto, afastando para longe essas eternas certezas.

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Título: Galveston
Autor: Nic Pizzolatto
Editora: Intrínseca
Páginas: 240
Ano: 2015
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SINOPSE – No mesmo dia em que é diagnosticado com uma doença terminal, Roy Cady pressente que o chefe, um agiota e dono de bar que é o mandachuva em Nova Orleans, quer vê-lo morto. Conhecido entre os membros da gangue pelo nada afetuoso apelido de Big Country, por causa do cabelo comprido e das botas de caubói, Roy desconfia de que o serviço de rotina para o qual foi enviado possa ser uma emboscada. E de fato é. Mas consegue inverter os papéis e, após um banho de sangue, escapa ileso. Além de Roy, só há mais uma pessoa viva no local, uma mulher, e num ato impensado ele aponta uma arma para a cabeça dela e a leva consigo na fuga em direção à cidade de Galveston – uma decisão imprudente e sem volta. A mulher, uma prostituta de 18 anos chamada Rocky, é jovem demais, durona demais, sexy demais – e certamente trará para Roy problemas demais. Alternando passado e presente com fluidez e inteligência, Galveston é um romance brutal e envolvente. Uma narrativa ágil, permeada de diálogos marcantes e construída com o máximo de tensão, prova do inegável talento literário de Nic Pizzolatto.

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10 comentários em “Pizzolatto não poupa o público em Galveston”

    1. Talvez a resenha tenha deixado uma falsa impressão de pouca complexidade. O livro não é raso não, pode confiar. Ele tem lá suas camadas, não tanto na trama, mas mais nos personagens e em seus destinos… Mas concordo: com trilha sonora, seria uma experiência melhor ainda…

  1. Eu gostei bastante, uma leitura rápida e envolvente. Nic Pizzolatto mantém suas “viagens” tão presentes em seus seriados com analogias muito peculiares e pensamentos aleatórios do personagem principal, narrador, Roy. É um noir puro do começo ao fim; personagens quebrados e com passados sinistros – outra marca do autor – e ambientes boêmios presentes. É ótimo pra quem gosta de um thriller policial bem ao estilo norte-americano, com um personagem que é mais acostumado a resolver as coisas com as mãos do que com a cabeça – especialmente fãs de True Detective. Espero que ele escreva mais romances.

  2. O livro tem bastante altos e baixos. Mesmo sendo narrando em primeira pessoa, não consegui me envolver muito com os personagens. Esperava algo mais profundo. Da metade do livro pro final o ritmo fica um pouco melhor. A resenha de vocês está muito boa. Descobri o site hoje. Parabéns pelo trabalho!

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