Leonardo Padura e o elogio à heresia nossa de cada dia

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Por Rogério Christofoletti – Existem artistas em que é possível perceber quando chegaram ao seu auge. Eles cintilam, despregam-se dos seus contemporâneos e recebem os mais diversos rótulos, sendo o mais comum o de “gênios”. Mas existem outros que vão além. Quando percebemos que foram longe, ainda mantêm uma trajetória ascendente, sinalizando novos marcos, demonstrando vigor e força. Foi assim com José Saramago.

Quando lançou “O evangelho segundo Jesus Cristo”, parecia ter chegado ao topo. Que nada! Depois, viriam obras maravilhosas como “Ensaio sobre a cegueira”, por exemplo. Com Leonardo Padura, acontece o mesmo. Não bastasse ter espalhado quase uma dezena de títulos com o detetive Mario Conde, exercitando uma literatura policial com estilo e suíngue, o escritor cubano nos ofereceu “O homem que amava os cachorros”, apoiado numa pesquisa monumental e com explícito domínio narrativo. Quando pensava que Padura havia tocado o céu, caí do cavalo. “Hereges”, lançado há pouco no Brasil, é outro romance maiúsculo, daqueles que se fala por anos e anos e anos.

Como o próprio autor gosta de explicar, não se trata de um livro de Mario Conde, mas COM Mario Conde. Mesmo afastado da polícia há quase vinte anos, ele não perde o jeito de farejar crimes e um intrigante pintor o procura para desvendar mais um mistério: como um quadro pintado por Rembrandt há 350 anos, que pertenceu a uma família de judeus poloneses que habitavam Cuba, reapareceu em Londres para ser leiloado? A partir daí, o leitor é levado à Europa do século 17, à Havana das vésperas da Segunda Guerra Mundial, à Cuba de 2007-2008… Somos apresentados a personagens marcantes, apaixonantes e inesquecíveis: o judeu que renega a religião, o pintor que desafia seus pares para seguir um mestre, a garota emo que persegue um amor e uma causa…

“Hereges” surpreende por muitas razões. Mescla romance histórico com crítica social, não renuncia à narrativa policial e se revela um extraordinário empreendimento humanístico. Impossível não se emocionar com os acontecimentos no Porto de Havana em 1939, quando o navio Saint Louis – lotado de imigrantes judeus, que tentavam escapar das perseguições nazistas – tem que retornar à origem sem desembarcar seus passageiros.

O impasse alfandegário daquele episódio real é uma ferida cubana, e no final das contas, uma boa metáfora do embargo comercial e seus muitos desdobramentos até hoje. Impossível não se emocionar também com a saga judaica, narrada a partir dos Kaminskys, e da forma respeitosa e sensível com que Padura trata a relação do homem com o sagrado. O velho Joseph tenta sobreviver e se adaptar à Ilha no final dos anos 30, seu filho Daniel nega a aceitação como estratégia de sobrevivência dos judeus, vendo nela uma submissão insuportável. Por isso, afasta o cálice que vai de Abrahão ao holocausto, assumindo sua condição herege. É a eles que Padura dedica seu livro, aos não ortodoxos, àqueles que amam a liberdade, que desafiam as normas estabelecidas, que enfrentam as consequências, que não se conformam.

Descobrimos, então, que temos nas mãos não só o destino, mas um livro que se insinua esperançoso e devotado no que o humano pode oferecer. De bom e de ruim. Com destreza, Padura conduz seus leitores por labirintos emocionais e por um cipoal de explicações sobre a trajetória do misterioso quadro de Rembrandt, que pode tanto retratar uma das suas famosas cabeças de Cristo quanto registrar um autêntico judeu do século 17.

 

padura

É bem verdade que Mario Conde está mais cansado desta vez, mas não deixa de oferecer seu caráter e inteligência ao mastodonte com rabo de cavalo que o contrata a cem dólares por dia. Percorre Havana atrás de um passado alheio, de uma causa que resiste aceitar. O leitor vai encontrar menos ação que em outras aventuras, mas está tudo lá! Os cozidos maravilhosos de Josefina, o magro Carlos e os amigos de sempre, os porres de rum, as noites (mais brandas) de amor com Tamara…

Quem já se habituou, vai reconhecer as referências a outros livros de Conde, como “Passado Perfeito” e “Ventos de Quaresma”. Mas se este é o seu primeiro encontro com o investigador, mantenha a calma. Padura costura bem os capítulos, esculpe com esmero os desfechos dos parágrafos e, como sempre faz, em meio ao lirismo de muitas descrições, dispara palavrões e petardos que nos fazem gargalhar.

O que se percebe também é que não temos um único romance nas mãos, mas quatro em um! Padura organiza a narrativa num quadrado: os livros de Daniel, Elias, Judith e Gênesis. Ironicamente, este último – que é pra ser o primeiro dos livros! – funciona como epílogo e faz convergir as pontas soltas deixadas propositadamente pelo autor ao longo das mais de 500 páginas do volume. A trama é bem urdida, e a catedral erigida pelo escritor cubano tem suas paredes cobertas por detalhes. São paralelismos diversos, a repetição intencional de nomes (à moda de García Márquez), e um mergulho profundo nos sentimentos, com especial apreço à liberdade, essa condição tão venerada e renegada pelos humanos.

Sim, Padura, a arte é poder, e é com ela que se pode chegar a um sentido para a vida, para as páginas de um livro, para as escolhas que fazemos (ou deixamos de fazer) todos os dias.

Livros e e-books de Leonardo Padura

* Livro enviado ao site pela Boitempo Editorial

 

SOBRE O LIVRO

Título: Hereges
Autor: Leonardo Padura
Editora: Boitempo Editorial
Páginas: 272
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SINOPSE – Em seu novo livro, o escritor cubano Leonardo Padura repete a façanha do best-seller premiado O homem que amava os cachorros ao criar uma mistura de romance histórico e noir, resultado de anos de investigação sobre a perseguição aos judeus. O ponto de partida é um episódio real: a chegada ao porto de Havana do navio S.S. Saint Louis, em 1939, onde se escondiam 900 refugiados vindos da Alemanha. A embarcação passou vários dias à espera de uma autorização para o desembarque. No romance, o garoto Daniel Kaminsky e seu tio, aguardavam nas docas, trazendo um pequeno quadro de Rembrandt que pertencia à família desde o século XVII e que esperavam utilizar como moeda de troca para garantir o desembarque da família que estava no navio. No entanto, o plano fracassa, a autorização não é concedida, e o navio retorna à Alemanha, levando também a esperança do reencontro. Quase setenta anos depois, em 2007, o filho de Daniel, Elías, viaja dos Estados Unidos a Havana para esclarecer o que aconteceu com o quadro e sua família. Hereges ganhou o X Prêmio Internacional de Romance Histórico “Ciudad de Zaragoza” e foi finalista dos prêmios Médicis e Fémina.

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