A comédia mundana, de Luiz Biajoni

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Por Rogério Christofoletti – Alguém já disse que, depois de Nelson Rodrigues, escrever sobre sexo e perversão é meio loucura. Já estaria tudo ali. Tudo seria repetição. Pode ser. Deve ser. Afinal, sexo é algo feito de movimentos repetitivos, que depende da fricção e da completa insatisfação. No fundo, no fundo (sem trocadilhos, desta vez), no sexo e na literatura, temos muito pouca diferença e muita-muita repetição. Apesar disso, deixamos de ler ou de trepar? Claro que não.

Talvez seja a razão para Luiz Biajoni ignorar as placas de alerta, cruzar o portal, e escrever um punhado de livros que têm no sexo seus alicerces. “A comédia mundana” (Língua Geral, 2013) reúne três histórias do autor, que se entrelaçam como aquelas ilustrações contorcionistas do Kama Sutra. O volume que traz “três novelas policiais sacanas”, tem quase 500 páginas e capa assinada por Benício, lendário cartazista do cinema nacional, mestre de pin-ups e de apurada estética pulp. “A comédia mundana”, na verdade, junta livros escritos em anos distintos, lançados originalmente na internet mas que acontecem na mesma cidade do interior paulista e que retomam os mesmos temas, personagens e perversões.

 

 

Em “Sexo Anal: uma novela marrom”, uma irremediável adepta dessa modalidade copulativa se desilude da vida e do jornalismo à medida que crimes hediondos chacoalham a cidade de pouco mais de cem mil habitantes. Cinismo, hemorróidas e safadeza fazem o leitor devorar quase duzentas páginas em poucas horas.

“Buceta: uma novela cor-de-rosa” é mais complexa na trama, bem amarrada, assumindo uma estrutura narrativa mais típica das histórias policiais. A fauna é mais variada também: velhas travestis, respeitáveis senhores que não deixaram o armário, fogosas insaciáveis, maridos que não funcionam regularmente, jornalistas comprometidos (e isso não é um elogio)… Há também desmanche de carros, tráfico de drogas, mortes por encomenda e corrupção policial.

“Boquete: uma novela vermelha” avança quase vinte anos e faz enxergar uma sociedade mais hipócrita ainda. Evangélicos, maçons, traficantes e políticos se agarram a suas crenças para construir seus futuros. Um hímen tem o mesmo valor de um sobrenome importante, e ele também ajuda a garantir um futuro. Mais uma vez, Biajoni nos esfrega sexo na cara, sem pudor com as palavras, com as variações, com as convenções.

Seus personagens buscam incansavelmente a felicidade. Buscam-na no sexo, no alívio de instintos primitivos. Como se essa fosse a única chave para encontrar paz. Ironicamente, é o mesmo sexo que as afasta de seus objetos de desejo, pois a sociedade marginaliza quem desafia suas normas morais e pune quem tenta ser diferente. A maioria ainda quer repetição… Outros personagens buscam incansavelmente a felicidade matando pessoas, fazendo o descarte de quem os afasta de seus objetos de desejo.

 

Trepar e matar é só começar

Nas páginas de “A comédia mundana”, o leitor vai perceber que a felicidade é fugaz e só dura até que os personagens recobrem o fôlego e voltem à luta. Neste sentido, Virgínia, Assis, Monique, Carol, Fraguinha, Carlão, Janice, Tata e todos os outros são humanos, demasiado humanos. Nessa trilogia safada (e fora do livro também), tem gente louca pra dar o cu, gente que quer botar buceta, e gente que quer voltar a ter cabaço. Assim mesmo: de forma crua. Todos querem ser felizes. Eles trepam muito. Mais que nós, vamos confessar. Eles matam muito também. Mais que nós, e isso é um alívio. Saciamos nossa ânsia por sangue fantasiando e lendo histórias policiais. É o que Biajoni nos oferece, generosamente embrulhado em sexo. É sujo, rápido e vem encharcado de dejetos e diversos fluídos corporais, – inclua o sangue aí. Não se trata de pornografia, mas de uma literatura voraz, ansiosa, ofegante. Tem ritmo e cadência, como convém a esse esporte de que tanto gostamos…

Na década passada, muitos leitores leram as novelas de Biajoni separadamente. E isso é plenamente possível, gerando prazeres distintos. Cada história se basta, mas lê-las juntas assim é como dar três sem tirar: provoca uma ligeira fadiga. Talvez aqueles primeiros leitores esperassem o encaixe das partes, mas penso que o texto poderia sofrer alguma desidratação em diversos momentos, evitando repetição de ideias, recordatórios de episódios, descrições demasiadas. Nem tudo precisa ser explicado, ainda mais quando se trata de sexo e morte. É preciso notar ainda que alguns diálogos são implausíveis – como quando o doutor Júlio explica que não quer mais nada com Virgínia – e certas motivações de crime são quase caricaturais, é o caso da listinha de Monique. Apesar disso, a falta de sutileza de Biajoni garante bons efeitos cômicos e tiradas memoráveis em “A comédia mundana”. No geral, o grosso volume que poderia passar por dicionário ou bíblia, é divertido e envolvente, e seu autor não exala a pretensão literária e egocêntrica que transborda de muitos autores nacionais.

Nelson Rodrigues disse uma vez que até os canalhas envelhecem. Luiz Biajoni sabe disso e nos deixa outra útil constatação: “foder com alguém” carrega em si os sentimentos mais extremos. Pode revelar o máximo da intimidade que se tem com alguém e o máximo do ódio dedicado.

 

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mundanaTítulo: A Comédia Mundana
Autor: Luiz Biajoni
Páginas: 480
Editora: Lingua Geral
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SINOPSE – Ao longo de três histórias passadas na mesma cidade, com personagens que se cruzam e se repetem em cada um dos relatos policiais, Luiz Biajoni disseca uma realidade tão caricata como violenta, tão tragicômica como real.

 

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5 comentários em “A comédia mundana, de Luiz Biajoni”

    1. Wanderley, me divido entre o kindle e a estante. Na verdade, aqui em casa, as estantes já estão abarrotadas e estamos empilhando livros em todos os cantos. No kindle, o Biajoni vai ficar folgadão…heheheh. abraço

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