Caixão Fechado, de Sophie Hannah

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Por Josué de Oliveira – Se precisasse resumir minha resenha de Os Crimes do Monograma, em 2014, diria que se trata de um romance um tanto bagunçado. A primeira experiência de Sophie Hannah como a nova Agatha Christie, trazendo de volta o inigualável detetive Hercule Poirot, pecava sobretudo por apresentar uma trama complicada ao invés de complexa, muito pouco parecida, em minha opinião, com algo que a Rainha do Crime escreveria. Trata-se, apesar disso, de um bom livro, como detalhei. Impossível terminá-lo sem a certeza do talento de Hannah e de sua pegada no mínimo interessante para romances policiais clássicos.

Essa convicção se consolida ao término de Caixão Fechado (HarperCollins Brasil), segunda aventura de Poirot concebida pela autora e lançada com a benção dos herdeiros de Agatha Christie.

 

Mais bem-sucedido que seu antecessor em quase todos os aspectos, o novo livro alcança um agradável equilíbrio entre os elementos familiares das histórias de Agatha e a rica bagagem autoral de Sophie Hannah.

 

Na trama, poucos meses após o caso do Hotel Bloxham (narrado em Os Crimes do Monograma), o inspetor Edward Catchpool é convidado pela popular autora Athelina Playford para passar uma semana em Lillieoak, sua mansão no Estado Livre Irlandês. O policial atende ao chamado, acreditando que a escritora gostaria de se valer de seus conhecimentos sobre a Scotland Yard para seu próximo livro; ao chegar, descobre que Hercule Poirot também foi convidado.

Durante o jantar, Lady Athelina anuncia que refez seu testamento, deixando todos os bens para seu secretário, Joseph Scotcher, desconsiderando os próprios filhos Harry e Claudia. Se esta atitude não fosse estranha o suficiente, outro fato chama a atenção: devido a uma doença fatal nos rins, Scotcher tem poucas semanas de vida. Um rebuliço é instalado na família Playford, e a curiosa sequência de acontecimentos termina com o cadáver de Scotcher se esvaindo em sangue no salão, metade de seu rosto destruído por golpes de porrete. Mas por que alguém mataria um homem que tem tão pouco tempo de vida? O que escondia o atencioso e educado Joseph Scotcher, sempre tão preocupado com fazer as pessoas a sua volta se sentirem bem? Este, naturalmente, é um caso para Hercule Poirot.

Desde as primeiras páginas, a sensação que brota de Caixão Fechado é de estranheza. Mesmo antes do cometimento do assassinato, Hannah já deixou perguntas pairando no ar: qual a razão do convite a Catchpool e Poirot?, e por que Lady Athelina mudaria seu testamento?

E nos mostrou o suficiente dos personagens para nos levar a desconfiar de que algo de insólito está acontecendo em Lillieoak. Esse clima se mantém durante todo o romance, reforçado, por exemplo, pelos instigantes diálogos a respeito da natureza do conhecimento travados entre Poirot e o médico Randall Kimpton, a bizarra acusação feita pela enfermeira Sophie Bourlet, a hesitação constante do mordomo Hatton antes de dizer qualquer coisa. Essa estranheza por vezes dá lugar ao absurdo completo, mas é um tom que se adequa bem à história contada, mostrando que a autora está ciente de que não precisa se levar tão a sério ao escrever um romance policial clássico.

Essa dose de artificialidade não compromete o todo, mas gera problemas pontuais. A atuação dos policiais responsáveis pela investigação é pouquíssimo crível, por vezes beirando a incompetência. Também é difícil acreditar que pessoas que tão claramente cientes de informações úteis para a investigação não seriam mais pressionadas a revelá-las, tanto pelos oficiais quanto por Poirot. São detalhes, mas podem incomodar os mais exigentes, e não sem motivo.

A composição dos personagens, de início, me incomodou um pouco, mas quando consegui entender e abraçar o tom geral da história, esse elemento passou a me parecer mais um acerto de Hannah. Naturalmente, alguns se destacam que outros: Athelina Playford é vibrante e cheia de uma graça muito própria, por vezes exasperante; Claudia Playford, sua filha mais velha, escolhe cada palavra com enorme cuidado para soar o mais cruel possível; noivo de Claudia, Randall Kimpton é a ambiguidade em pessoa, tão cínico quanto amante inveterado da verdade; e a própria vítima, Joseph Scotcher, é fascinante à sua maneira, e dizer mais que isso seria chegar perto do terreno dos spoilers. Os demais estão longe de serem ruins, embora não tenham o mesmo brilho.

Poirot está ótimo. Seu ego gigantesco permanece intacto, o que é compensado por sua sagacidade. É divertido perceber sua raiva diante da petulância do assassino, que decidiu seguir em frente com seu plano mesmo com a presença do grande Hercule Poirot na mesma casa. Em comparação com “Os Crimes do Monograma”, o belga está mais contido, mas não menos brilhante.

A resolução proposta por Hannah para o mistério é muitíssimo satisfatória, e muito mais próxima do espírito de Agatha Christie. Trata-se de uma resposta relativamente simples ao crime cometido, que convence pela fascinante exploração psicológica das motivações do culpado ou culpada realizada por Poirot. O momento mais memorável de “Caixão Fechado” é quando entendemos as razões do assassinato e nos damos conta de que a autora estava o tempo todo apontando para elas, e não apenas com pistas bem camufladas, mas também por meios mais indiretos, como diálogos incidentais e reflexões deste e daquele personagem. Nesse sentido, o romance ganha novos e provocativos contornos, pois o seu tema, o assunto do que qual Hannah esteve falando o tempo todo e que é de fato a alma da história, se descortina por completo, evidenciando o esmero com que a trama foi construída.

Caixão Fechado é uma história de mistério sobre a importância dos mistérios para preservar o encanto da vida, e um ótimo policial à moda antiga. De quebra, nos mostra que Hannah tem muito a oferecer ao universo e aos personagens eternos de Agatha Christie.

* Livro cedido em parceria com a Harper Collins BR
(Imagem: Josué de Oliveira)

 

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