Por que a literatura policial não pode ser chamada de ficção de crime?

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POR RAUL SOUSA – Um título alternativo a esse texto pode ser “Resposta a dois escritores”. A ideia surgiu após responder e discordar das proposições que esses escritores fizeram sobre abandonar o termo “literatura policial” e adotar um novo. É difícil dizer a origem do termo e suas variações. É possível encontrar registros em jornais brasileiros do começo do século XX usando o termo, mas é possível que sua origem seja mais antiga na língua portuguesa.

Se formos abrangentes, encontraremos documentos ainda mais antigos, do século anterior, usando o termo em alguma língua românica. Os termos chegam a ser similares à nossa língua: “novela policíaca” em espanhol, “roman policier” em francês, o inutilizado “romanzo poliziesco” em italiano (italianos utilizam o termo “giallo” por outro motivo) ou ainda “roman politist” em romeno. Termos internacionais mas que estão muito agrupados e dividem características em comum. O problema é haver consenso sobre essas características. A discussão, nesse ponto, acaba englobando até mesmo os países anglófonos.

Quando analisamos textos brasileiros do início do século XX percebemos que o termo “policial” não é exclusivo daquilo que conhecemos hoje como polícia. Era utilizado de forma mais ampla e englobava até mesmo os personagens que não tinham relação nenhuma com as forças estatais para manter a ordem. Sherlock Holmes era referenciado como “agente de polícia por amor do ofício”. Noutro momento lê-se que “a polícia profissional e a polícia dos amadores” criaram teorias de assassinato para o caso de um padre desaparecido na França, explicitando a diferença entre o grupo dos policiais ligados ao Estado e outros indivíduos que nenhuma relação tinham com o primeiro. O texto citado é de 1908, mas é possível encontrar uma citação de 1901 que utiliza um termo muito parecido ao que usamos. O mais espantoso é que o texto original surgiu em inglês e foi escrito por G. K. Chesterton, o criador do padre Brown. A Defence of Detective Stories prova que o termo era utilizado mesmo longe das línguas românicas.

Seria, porém, ingenuidade acreditar que a tradução de “detective fiction” como “literatura policial” não possui ruídos. Existem algumas expressões utilizadas noutra língua que tem um significado aproximado, mas que não refletem a exatidão dos termos. Talvez a palavra da língua portuguesa que mais se aproxime dessa ideia é “saudade”, que até é traduzida mas suas traduções dificilmente refletem a exatidão do termo. O mesmo ocorre com “literatura policial”. Aproxima-se de “detective fiction”, mas há ruídos na tradução que afastam, mesmo que um único milímetro, do termo original.

Os críticos do termo “literatura policial” argumentam que é um termo limitador por nem sempre ter relação com a figura do policial. Expliquei anteriormente que o termo era genericamente utilizado para se referir até mesmo às figuras detetivescas do gênero e também expliquei que há ruídos na tradução e que as traduções podem se afastar do termo original. Realmente concordo que o termo é velho e que cabe aos escritores procurar termos substitutos se assim lhes aprouver. O problema é que os escritores escolheram usar o termo “ficção de crime”, algo que sequer se aproxima daquilo conhecido como “detective fiction”!

 

Antes que você, caro leitor, possa jogar pedras em mim permita-me explicar o ponto: “detective fiction” refere-se às histórias que estão relacionadas à figura do detetive e “crime fiction” refere-se às histórias que estão relacionadas com o crime.

 

Aceitemos, por um segundo, que as duas coisas são iguais e “ficção de crime” é um substituto de “literatura policial”. Faço uma pergunta rápida: quem é o escritor considerado como pai do gênero? Muitos leitores responderão “É Edgar Allan Poe! Ele escreveu Os Assassinatos na Rua Morgue em 1841!”. O leitor que respondesse isso receberia um sonoro “NÃO!”. Seria possível citar, por exemplo, Uma Passagem na História Secreta de Uma Condessa Irlandesa, escrita por Sheridan Le Fanu, como sendo um exemplo de história de crime que antecede em 3 anos a publicação de Edgar Allan Poe. Poe é considerado o pai do gênero justamente por ter criado o que é essencial numa história de detetive: um personagem que é apresentado com um problema, aparentemente insolúvel, mas que, no fim, consegue explicar o que realmente aconteceu. Sheridan Le Fanu criou uma história de mistério em sala trancada com uma tentativa de homicídio, mas ainda assim não fica com os louros de ser um dos pioneiros do gênero porque não há um detetive que explique como o crime ocorre.

R. Austin Freeman explica em The Art of the Detective Story, lançado em 1924, que o problema que o detetive precisa solucionar é normalmente um crime (“the problem is usually concerned with a crime…”). Ora, ele não fala que é seguramente um crime, dando uma margem para interpretar que é possível falar que a maioria dos casos há crimes, mas que não é possível afirmar que sempre haverá um crime. Isso contradiz diretamente o que a pesquisadora Sandra Reimão afirma em O que é Romance Policial (“Toda narrativa policial apresenta um crime, um delito, e alguém disposto a desvendá-lo…”).

E. M. Wrong, em 1926, escreve que essas histórias envolvem problemas que quase sempre são crimes (“A detective story involves a problem which must nearly always be criminal…”), mas não afirma que sempre trazem crimes. Se ainda não ficar convencido de que literatura policial, que é uma aproximação do termo “detective fiction”, trata sobre um problema e não sobre crime recomendo que folheie uma revista antiga da Ellery Queen Mystery Magazine. Lá há uma clara distinção entre as histórias de crime e histórias de detetive. Isso também aconteceu nas edições em português e em outros países. Edward D. Hoch, lá nos anos 80, traz uma diferença entre os dois termos e tais diferenças são aceitas até mesmo por escritores contemporâneos vencedores do Edgar Awards, como Art Taylor.

Explicamos que o termo “policial” passou a ser empregado não ligado diretamente às forças estatais e também explicamos que é uma tradução ruidosa de “detective fiction”. Propusemos que “detective fiction” e “crime fiction” são diferentes. Apresentamos autores que separam os dois grupos. Falta, porém, analisar obras do gênero para ver se tudo o que expusemos faz sentido mesmo.

Aviso ao leitor que irei retalhar algumas obras e que uma série de spoilers de contos e romances aparecerão nos próximos parágrafos.

 

Citando Ellery Queen: que o leitor se acautele! Antes de tudo, porém, é preciso falar um pouco sobre a importância dos contos da literatura policial. Dorothy L. Sayers chamava a atenção para o contos de literatura policial porque lá foi o ponto onde as histórias surgiram e muitos personagens se popularizaram, como Dupin e Sherlock Holmes. Os contos são bem mais versáteis que as narrativas mais longas, 20 páginas sobre um personagem fugindo de uma cela de segurança máxima atrai mais que 300 páginas sobre o mesmo tema.

Analisemos, portanto, o conto O Mistério de Doomdorf, de Melville Davisson Post. Há uma morte, sem dúvidas, e há uma investigação conduzida por Tio Abner. A conclusão que o personagem chega é que o criminoso não era um ser humano e sim um conjunto envolvendo os raios de sol e uma garrafa com licor. Existe crime sem criminoso? Definitivamente não! Ainda assim o conto com Tio Abner traz toda a estrutura comum a uma história de detetive, mas não tem um crime. Acredita-se haver um crime! São duas coisas bem distintas. Outro exemplo é O Homem do Lábio Torcido, conto que traz Sherlock Holmes realizando uma busca por um sujeito que havia desaparecido. Acredita-se, mais uma vez que há um crime acontecendo, mas não houve crime nenhum. Outra história com uma figura realizando uma investigação e zero crimes! Ainda em Sherlock Holmes é possível citar A Juba do Leão, um dos poucos contos que não foram narrados por Watson. Uma morte estranha acontece e, por fim, Holmes percebe que o criminoso da história era uma água-viva conhecida como juba-do-leão. Novamente temos uma investigação, uma morte, mas não podemos dizer que houve crime porque a pobre água-viva não pode ser culpada de um crime.

Ok, ok. Estou citando casos que podem ser torcidos e retorcidos ao extremo até que derrubem uma gota de crime. Analisemos, portanto, o conto A Moeda do Presidente, escrito por Ellery Queen. George Washington enterrou uma das primeiras moedas cunhadas dos Estados Unidos num terreno com vários carvalhos, cada um representando uma das treze colônias. Após uma investigação do terreno e da aplicação do raciocínio lógico, Queen consegue descobrir a real localização da moeda. Novamente há a figura do detetive, mas zero crimes. Talvez o exemplo que mais se aproxime da perfeição no gênero é o conto O Problema da Cela 13, escrito pelo genial Jacques Futrelle. O professor Augustus S. F. X. Van Dusen, conhecido como Máquina Pensante, é desafiado por seus colegas acadêmicos a fugir de uma cela de prisão em uma semana.

Acompanhamos o professor de perto, mas não sabemos como ele consegue fugir dali. Só na última parte do conto é que recebemos uma explicação de como o truque foi realizado. Mais uma vez temos a figura do investigador (considerando que Van Dusen investigava métodos para conseguir sair da cela) e nenhum crime. Destaco aqui ainda as histórias da escritora Lee Sheridan Cox, focadas num público mais jovem, que traziam jovens em situações de investigação, mas sem a presença de crimes.

Isso mostra que não é possível usar o termo “ficção de crime” porque nem todas as histórias com uma morte ou investigação possuem necessariamente um crime. São, literalmente, coisas distintas. Espero que, nessa altura do campeonato, você já tenha guardado as pedras, leitor. Minha proposição é que a ficção de crime seja tratada de forma independente da chamada literatura policial. Existem histórias de crime que não trazem uma investigação e existem histórias de detetive que não trazem crimes. Tratemos rapidamente de matemática: imagine o conjunto A e o conjunto B. O conjunto A possui todas as histórias onde há um crime. O conjunto B possui todas as histórias onde há a investigação de algum problema. Os dois conjuntos possuem elementos em comum. Cito aqui Assassinato no Expresso do Oriente (Agatha Christie), Os Crimes do Unicórnio (John Dickson Carr), De Outro Mundo (Clayton Rawson) e O Falcão Maltês

(Dashiell Hammett) como histórias que estão nessa zona comum. É possível citar histórias que fazem parte do conjunto A, mas não fazem do B: destaco as duas partes de Passeio Noturno (Rubem Fonseca) e o conto Uma Passagem na História Secreta de Uma Condessa Irlandesa (Sheridan Le Fanu). Além disso existem histórias que fazem parte do conjunto B, mas não fazem parte do conjunto A: os destaques ficam para O Problema da Cela 13 (Jacques Futrelle) e O Tiro que Esperou (Vincent Cornier).

A literatura policial, sem dúvidas, precisa de um novo nome. O termo é defasado e cada vez mais vemos os absurdos cometidos pela polícia sendo expostos a luz do dia. Os Estados Unidos foram chacoalhados com protestos cometidos pela polícia contra pessoas negras. O Brasil tenta não se afogar com a corrupção da polícia em diversos estados. É hora de buscar termos alternativos, como “histórias de detetive”. Só que não é possível continuar acreditando que o termo “ficção de crime” é um substituto ideal. São dois universos próprios, com características próprias e alguns exemplares únicos. O ideal é entender que uma história pode ser, simultaneamente, de crime e de literatura policial.

 

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