Os crimes do monograma, de Sophie Hannah (Agatha Christie)
Por Josué de Oliveira – Para mim, começou com “O assassinato no campo de golfe”. Encontrei-o quando uma das bibliotecárias do colégio onde fiz a sétima série se compadeceu de minha triste situação – já tinha lido todos os livros da Coleção Vagalume que ficavam nas estantes espalhadas pela área central da biblioteca, além de todos do Pedro Bandeira e da Stella Carr – e perguntou se por acaso eu já tinha lido alguma coisa de Agatha Christie. Respondi que não, e ela me conduziu a uma estante que ficava atrás do balcão. Era um livro de capa dura, lombada meio curva, com a ilustração de homem caído e sangrando na capa, na companhia de uma mão segurando um punhal e uma mulher de expressão misteriosa. Levei o livro para casa e, quando o devolvi, perguntei se podia voltar à estante dos livros da autora, que passei a frequentar assiduamente naquele ano e nos seguintes.
Agatha Christie é a entrada de
muita gente na literatura policial
A autora inglesa consagrou o gênero e ajudou a torná-lo ainda mais popular, salpicando-o de elementos próprios que surpreenderam e cativaram uma multidão de leitores – inclusive o garoto de treze anos parado em frente àquela estante, decidindo que livro leria em seguida –, além de influenciar gerações de autores ao longo da carreira que durou cerca de seis décadas e 80 livros. Agora, quarenta anos após a última aventura de sua mais famosa criação, chega ao público uma nova história protagonizada pelo detetive belga Hercule Poirot. A também inglesa Sophie Hannah, respeitada autora de suspenses psicológicos, foi a escolhida pelos herdeiros da escritora para trazer Poirot à vida mais uma vez.
A decisão de lançar um novo livro com base no cânone de Agatha, como era de se esperar, fez os fãs mais puristas fecharem a cara. Não fui um deles. Corri atrás de Os crimes do monograma (Nova Fronteira, 288 páginas) assim que o livro saiu, com saudade de um de meus personagens favoritos e curioso para descobrir como ele seria tratado por outras mãos, diferentes das de sua criadora original.
Em Os crimes do monograma, Poirot tem sua paz interrompida quando a jovem Jennie entra no Pleasant’s Coffee House, onde o detetive toma um café enquanto aguarda seu jantar. A moça lhe diz que “já está morta”: seu assassinato é iminente e, quando finalmente acontecer, a justiça será feita. Na mesma noite, no Bloxham Hotel, três cadáveres são descobertos: dois homens e uma mulher, cada um eu seu quarto, aparentemente envenenados. Em suas bocas, abotoaduras de ouro com um misterioso monograma: PIJ. A investigação é conduzida pelo jovem inspetor Catchpool, amigo de Poirot. Este, convencido da ligação entre os dois eventos, se envolve de pronto na investigação.
É justo começar pelos acertos. A nova história apresenta todos os elementos essenciais de um romance policial clássico: um crime com elementos incompreensíveis, um detetive com faculdades mentais extraordinárias, um coadjuvante que narra os acontecimentos e se vê constantemente impressionado pela capacidade dedutiva do colega, pistas falsas ao longo do caminho, um número limitado de suspeitos. Como não poderia deixar de ser, a solução é apresentada de modo expositivo, com todos reunidos numa sala ouvindo as respostas da boca do protagonista.
Outro ponto importantíssimo: o leitor tem a mesma quantidade de informação que o detetive, de modo que pode até mesmo desvendar o caso antes dele. Essa é uma marca importante dos policiais da Era de Ouro: as narrativas se assemelhavam a quebra-cabeças. As peças espalhadas pelas páginas ficavam disponíveis tanto para o leitor quanto para o detetive; havia uma “honestidade” envolvida: ambos teriam as mesmas chances de desvendar o enigma. É assim aqui. Nesse quesito, Os crimes do monograma faz justiça ao tipo de romance policial em que se enquadra.
No entanto, é certo que isso não será o suficiente para agradar leitores atraídos sobretudo pelo fator Agatha Christie. É o nome dela com letras grades na capa. Quando começamos a olhar as coisas por esse ângulo, a trama fica mais complexa, por assim dizer. Copiar o estilo de um autor é um desafio que dificilmente atrairia outro, de modo que não seria justo esperar isso de Hannah. Por outro lado, sendo sua tarefa escrever um livro à la Agatha Christie, espera-se, mais do que o uso de um personagem, o reencontro com um estilo conhecido de escrita, trama, desenvolvimento de personagens, e, claro, utilização do protagonista. É nesses pontos que Os crimes do monograma começa a mostrar falhas. A começar pelo mistério em si. Os assassinatos não se parecem com os que encontraríamos num romance de Agatha Christie, e o desenrolar da trama – apesar de nunca enfadonho – também não se assemelha com o que esperaríamos encontrar numa história da Rainha do Crime. Um exemplo é a primeira ida de Poirot, na companhia de Catchpool, ao Bloxham Hotel: os pormenores dos crimes são apresentados de modo demasiadamente expositivo. A descoberta, feita pelo belga, de certo detalhe na cena de um dos assassinatos soa um tanto forçada, distante das capacidades de até mesmo alguém como Hercule Poirot.
O protagonista tem, ele próprio, sua parcela de problemas. O Poirot de Hannah apresenta uma tendência absolutamente irritante de falar de si mesmo na terceira pessoa, muito mais que seu normal. A autora força a mão também ao retratar o aspecto professor/aluno de sua relação com Catchpool, que acaba caindo na artificialidade. Ainda mais estranho é ver, em pelo menos uma ocasião, Poirot saltando para conclusões sem base em evidências, apenas indícios difusos de uma possível nova direção para o caso. A autora é mais bem sucedida ao mostrá-lo encaixando peças importantes do quebra-cabeça a partir de detalhes completamente dispensados pelos demais, mas esses momentos surgem em meio aos excessos mencionados. A recriação de Poirot sofre muito com esses altos e baixos.
Catchpool, seu sidekick, também se mostra problemático. Talvez por seu background como autora de suspenses psicológicos, a autora busque dar-lhe uma profundidade emocional que outros coadjuvantes criados por Agatha Christie não receberam. Isso se manifesta no extremo desconforto de Catchpool perto de cadáveres, por exemplo, que lhe despertam lembranças difíceis da infância; porém, isso não é desculpa para incompetência demonstrada pelo policial, que simplesmente não ordena que os corpos sejam removidos na noite do assassinato, e eles permanecem nos mesmos lugares durante toda a noite. Trata-se de um erro crasso que um inspetor da Scotland Yard, independente de seus traumas, não cometeria.
Por fim, temos a problemática resolução da trama. Como apontei anteriormente, a autora é honesta com o leitor e lhe dá as mesmas pistas dadas a Poirot. Antecipar a solução, no entanto, será quase impossível para qualquer um. Não se trata de complexidade – o que se tem em Os crimes do monograma é complicação. Uma quantidade muito grande de reviravoltas que, mesmo resultando em surpresas interessantes, não deixam de soar forçadas. Os detalhes são tantos que a explicação de Poirot toma nada menos que cinquenta páginas.
A trama e seu final estão longe de serem ruins, mas, novamente, o que os torna em certos aspectos difíceis de aceitar é o fato de aquele ser, supostamente, o universo de Agatha Christie – e dificilmente veríamos Agatha Christie se estendendo tanto ou dando tantas voltas para entregar uma resolução.
Sua habilidade estava em ser, sobretudo, simples. Os contornos da trama serviam para tornar difusa a simplicidade dos acontecimentos, mas, ao final, o que se tinha (com a exceção de alguns romances, naturalmente) eram soluções simples. O que vemos aqui é o oposto disso. Hannah merece aplausos por conseguir concatenar todos os acontecimentos sem deixar pontas soltas, mas esses acontecimentos são quase inacreditáveis, o que tira muito da força de sua revelação.
Talvez todas essas considerações deem a entender que minha experiência com o livro foi dolorosa. Bem, nem tanto. Os crimes do monograma tem sua parcela de defeitos “independentes”, mas boa parte deles só se tornam visíveis quando a história é colocada contra o plano de fundo do universo de Agatha Christie. Se lido como livro qualquer, ignoradas (tanto quanto possível) as relações existentes, o que se tem é um romance que provavelmente agradará quem ainda se delicia com os policiais clássicos, com detetives lógico-dedutivos e reviravoltas em abundância. Confesso que tive de fazer esse exercício para prosseguir na leitura, procurando afastar justamente o fator Agatha Christie que primeiro me atraiu. Acabei sendo beneficiado por um entretenimento despretensioso e divertido. Às vezes, é o que temos.
Título: Os crimes do monograma
Autora: Sophie Hannah
Editora: Nova Fronteira
Páginas: 288
Ano: 2014
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SINOPSE – Em 1929, num café em Londres, Poirot é surpreendido pela entrada dramática de uma mulher certa de seu assassinato iminente. Mas, para o espanto do detetive, ela não quer ajuda: diz que merece o que está por vir e sai desabalada do local, sem mais explicações.Enquanto isso, o policial Edward Catchpool se depara com um cenário perturbador: em quartos diferentes de um hotel, três cadáveres são encontrados dispostos de maneira cuidadosa e com uma abotoadura de ouro com as iniciais P.I.J. em cada um. Juntos, Poirot e Catchpool tentarão desvendar a possível conexão entre aquela estranha mulher e os três crimes, antes que seja tarde demais e outras mortes ocorram.
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Formado em Estudos de Mídia pela UFF e vive em Niterói, RJ. Trabalha na área de desenvolvimento de livros digitais. Gosta de ler, escrever, ver filmes esquisitos e curte bandas que ninguém conhece. Atualmente, revisa seu primeiro romance policial.
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