Não há Sherlock Holmes que aguente. O comissário Maigret mudaria de profissão. Philip Marlowe nem seria tão durão assim. Estes e outros detetives precisariam passar por cursos de requalificação na prática investigativa. Estou apenas fazendo um exercício de imaginação ao transportar alguns personagens gringos para nossa terra das palmeiras e das beleza naturais, o Brasil.
Vamos lá, o que é mentira e o que é verdade? Deu no jornal: Mulher é suspeita de mandar matar o pai para ficar com a herança e teria prometido sete mil reais ao executor. Três pessoas da mesma família foram encontradas mortas por causa uma discussão em Alagoas. Polícia liberta família refém por duas horas em São Paulo. Homem é preso por fazer prova para tirar carteira de motorista no lugar de outra pessoa em Belo Horizonte. Esquema bilionário de corrupção é descoberto e envolve políticos conhecidos e donos de grandes empreiteiras.
A última foi fácil. Bom, quanto às demais, infelizmente todas são verdade e aconteceram nos últimos dias. Com mortes ou não, todas são crimes do mesmo jeito. No Brasil, a cada 10 minutos, 1 pessoa é assassinada. Provavelmente, quando você estiver terminando este texto, teremos menos um brasileiro para contar a nossa história. Dados divulgados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2014) mostram que, apenas em 2013, foram registradas 53.646 mortes violentas. Tivemos ainda 228.800 roubos de veículos no país e 50.320 estupros.
Complementando nossa realidade, de acordo com o Conselho Nacional de Justiça, o nosso país ocupa o terceiro lugar no ranking dos dez países com maior população prisional. São 711.463 pessoas presas, considerando aquelas em prisão domiciliar. Crise? Bem provável. A violência vem aumentando. As prisões não são mais suficientes.
Em um estudo um pouco menos recente, o sociólogo Júlio Jacobo Waiselfisz nos mostrou que estamos em guerra, só não sabemos disso. Considerando os 12 maiores conflitos mundiais entre 2004 e 2007, em países como o Iraque, Afeganistão e Índia, cerca de 170 mil pessoas morreram. Enquanto isso, no Brasil, mais de 200 mil foram mortas somente entre 2008 e 2011.
O que Sherlock faria? Possivelmente estaria sendo perseguido por uma gangue de criminosos com o objetivo de exterminá-lo, já que com a sua competência provavelmente estaria atrapalhando os negócios. Será possível imaginar nossos romances policiais em um contexto como este? Quem são nossos detetives da vida real que não conhecemos?
Como psicólogo, ao estudar e trabalhar na área de segurança pública, me motivo cada vez mais a conhecer a literatura policial brasileira. Ainda me confesso bem ignorante nesse quesito. Como nossos autores são influenciados por um contexto de violência como o que descrevi? Que semelhanças com o cotidiano podemos observar em suas obras? Para leitores mais experientes será possível responder estas questões ao visitar as aventuras Dick Peter, Ed Mort, Bellini ou Espinosa.
Como salientou nosso amigo colunista Mateus Pinheiro, temos motivos excelentes para gostar e explorar o mundo da literatura policial. Ele pode nos dizer muito sobre o nosso mundo. Temos personagens carismáticos e envolventes. Queremos explorar a mente humana, descobrir como, por que, para que aquele assassino comete tantas atrocidades. Ou mesmo crimes simples, passionais.
Será que buscando entender as tramas que nos prendem, os mistérios que nos assombram, queremos também entender um pouco melhor a nossa realidade? Já busquei responder a essa pergunta em Assassinaram o camarão! Por que nos interessamos por crimes?.
Talvez Freud e seus amigos possam explicar porque após assistirmos o noticiário e sabermos de todos os crimes que aconteceram naquele dia, deitamos na cama e pegamos aquele romance policial no qual um jovem apaixonado meio pirado mantém uma jovem sequestrada sedada e a transporta em uma mala de lá pra cá, ou mesmo procuramos um filme de terror ou suspense no Netflix.
Em apenas um dia, poderíamos investigar quase 150 mortes, não motivadas por uma guerra ou conflito étnico, apenas por uma guerra silenciosa, de batalhas diárias travadas por personagens e detetives anônimos, com vidas complicadas, problemas pessoais e conclusões brilhantes.
Talvez gostaríamos que tudo funcionasse como nos livros, nas séries de televisão e nos cinemas, com inicio, meio e fim. Roteiro fechado. Um drama aqui, um romance ali. Justiça sendo feita. Um quebra cabeça a mais ou a menos. Através da literatura exorcizamos nossos demônios, brincamos com a realidade complicada e incompreensível, dura de assistir e de cair os cabelos. Rimos da desgraça alheia para não rirmos da própria.
Vivemos em uma pátria armada, com 50 mil mistérios policiais por ano para serem investigados. Todos possivelmente fascinantes e chocantes. Tristes e instigantes. Que fenomenal é transitar entre a fantasia e a realidade.
(Imagem: Flickr/dynamosquito)
Psicólogo, mestre e doutorando em Psicologia. Atua no sistema prisional. É músico e leitor assíduo de romances policiais, com aquele lugar especial no coração para Georges Simenon e Raymond Chandler.
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Caro Rodrigo, de fato a literatura policial e de suspense mexe com a imaginação do leitor. Mas, ao contrário do que você pontua, não penso que o interesse do leitor brasileiro por crimes e mistério venha exorcizar os nossos demônios, nos dar um alento, um estímulo a acreditar que a Justiça pode ser feita embora o que vejamos na nossa realidade diga o contrário. Para mim, o interesse do leitor pelos crimes perfeitos, pelos roteiros fechados, como você diz, não implica em dizer que ele esteja interessado na vileza e crueza de nossa realidade diária de violência. Ao contrário, muito ao contrário. Isso demonstra que o cidadão leitor, o cidadão crítico, o cidadão pensante, dileto por querer entender a alma humana enquanto esta em um romance policial, na verdade, esta fugindo e não querendo entender a nossa própria realidade. O leitor de romance policial adora ser detetive nos livros porque o mundo da investigação está, parafraseando livremente Platão, no mundo das ideias. O leitor de romance policial jamais seria um detetive de fato e de direito. Somos milhões de leitores de mistério, mas os cinquenta mil mistérios policiais reais jamais serão investigados por essa horda de filhos de Artur Conan Doyle, Agatha Cristhie, Raymond Chandler, Patricia Highsmith entre tantos. Isto porque a realidade, por mais que consiga retratar a ficção, jamais pode ser totalmente ficcionada. Vemos casos bárbaros reais, dignos de uma mente doentia, cujos autores seriam facilmente descobertos pelos fascinantes conhecimentos e habilidades de um Hercule Poirot. Porém, não temos a capacidade mental, física - e até diria eu moral - para corrermos atrás das pistas, montar o quebra-cabeça e solucionar determinado caso. Somos leitores passíveis, que assistimos a violência das nossas ruas felizes em saber que somos capazes de resolver outros crimes e mistérios, desde que não sejam aqueles que acontecem do lado de cá dos livros.
Prezado Marcelo, sua leitura é excelente. A realidade é muito mais complexa do que a ficção e nosso poder sobre ela significativamente reduzido. Me interesso muito pela influência do contexto brasileiro sobre a criação de nossos autores, e tenho certeza que os próprios saberão melhor que eu quais as suas inspirações. Obrigado pela crítica.
Ao terminar de ler lembrei-me da história daquela velhinha piedosa. Estava ela a assistir uma conferência sobre mortalidade infantil na África. Bom orador, ao término o palestrante foi muito aplaudido. Aproveitando a dica ele engrenou ao microfone: vejam vocês como é terrível. Enquanto vocês aplaudiam pelo menos cinco crianças morreram! Levantou-se a velha: por favor, não batam palmas...
(Apenas uma brincadeira em cima de um bom post)
Triste e cômico não é Ivan? Obrigado pela leitura! Abraços
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