Por Regina Carvalho – Tenho acompanhado a produção literária de Ferréz desde o sucesso de Capão Pecado, em 2000. De seu livro anterior, Fortaleza da desilusão (1997), não tive conhecimento. A seguir veio Manual Prático do Ódio (2003), Amanhecer esmeralda (2005), Ninguém é inocente em São Paulo (2006), Deus foi almoçar (2011), O pote mágico (2012). Agora, este livro de contos, numa linha de trabalho que se distingue por uma série de razões, mas que vai muito além da literatura: dois CDs dentro do hip hop, poemas, colaboração em roteiros de cinema e TV, contos quadrinizados, confecção de roupas, e animação cultural. Seus livros foram traduzidos para vários idiomas, e ele participou da Feira Internacional de Frankfurt, em 2013. Nem todos os contos (curtos, sempre) se encaixam no gênero policial, mas muitos, sim.
O paulistano Reginaldo Ferreira da Silva adotou o pseudônimo FERRÉZ para simplificar seu contato com o público de periferia, o seu povo, seu mundo. E é neste mundo que ele transita, é para este mundo que produz, e é este mundo que deseja mostrar para quem se situa do lado de fora dele. Porque é o mundo onde vivem 2/3 da população paulistana, em 2/3 ou mais de seu território. É o mundo da maioria. Mas este é o mundo que é considerado “marginal”. Marginal por razões de rótulo, dado pela minoria que se diz culta… Ferréz quer que a voz dessa maioria seja ouvida, e trata de falar por ela.
Mas aqui, nesta obra, o que lhe dá distinção é a epígrafe: “Tem quem diz que é preto, tem quem diz que é viado, tem quem diz que é caipira, eu digo que sou do crime. É isso. E pronto.” (João Carlos da Rosa – que ninguém sabe quem seja, um ‘marginal’). Os Ricos Também Morrem abre com um prefácio em que o autor faz questão de esclarecer as razões de sua literatura participante, engajada, sim, e em justa causa. Em certo ponto, diz, depois de listar os locais em que se apresentou, mostrando seus contos, suas histórias:
“A cada colégio das quebrada que passava e lia os textos, lembrava da frase que mais ouvi durante minha caminhada na literatura marginalizada.
– Eu que num sou doido de ir nesses lugares.
Discurso nojento, de quem não pode amar o que faz.
Se fosse pensar assim, sequer escreveria uma linha, não iria para uma quermesse nessa vida, não passaria em presídios, colônias de pescadores, associações de moradores, não teria tido tantos abraços nos movimentos de ocupação, nas favelas por onde li os contos, arranquei sorrisos e gritos de revolta.” (p. 19)
São 40 contos sem índice, contos que cobrem amplo espectro da criminalidade exercida por/ exercida sobre a periferia, belamente ilustrado por Alexandre de Maio. Muitos críticos afirmam que o romance policial é a narrativa realista da atualidade. Ferréz mostra isso com clareza, com força, com variedade, sem fugir, sem se esconder, tratando de braços da repressão como a PM, a ROTA, a escola… até o Senado brasileiro. Usa nomes reais, em muitos casos, mas não vamos entrar na discussão do ficcional, o que de fato é.
Há tipos tocantes, como Nêgo Jaime, que não se conforma com a limitação da vida que leva por ali, e sonha sonhos diferentes, que tenta concretizar. Eternamente desrespeitado, acaba se enforcando em árvore do Parque da vizinhança, sintomaticamente chamado Santo Dias, que “contam que lutou por algo de valor.” E ninguém percebe que Nêgo Jaime também faz isso…
Ferréz, nos contos que classifico como policiais, mostra a visão pelo lado da periferia, como aqueles personagens sobre os quais a polícia tripudia. Como “Zé”, que muda de epíteto conforme a agressão dos PMs aumenta – apesar da recriminação do povo ao redor. Em “O país dos calças bege”, o egresso da penitenciária tenta retomar a vida, e encontra os mesmos obstáculos de sempre. Mas mostra: “entrei por assalto e me formei em homicídio, isso é que é faculdade.” (p. 60) Há certa tragicidade em quase todos, mas o cômico extrapola e faz o tom de “Meu querido crime”, narrador criminoso desastrado, uma obra prima, que nos faz rir com gosto.
Todo o universo da quase desconhecida periferia preenche o livro: crianças ignoradas pelos pais, nunca ouvidas, nunca acarinhadas; mulheres usadas pelos maridos para o sexo ou o trabalho doméstico; outras, impedidas de estudar. Ferréz não entra nunca no universo das religiões, não sei a razão, talvez não queira desrespeitar os leitores. E no amplo espectro de narradores, jamais entra um PM. Me parece meio irônico, já que a maioria deles deve ser também habitante de periferia. Trata ainda, e sem comentário algum, puro relato, do preconceito a que ele mesmo – autor reconhecido, livros traduzidos no exterior – é submetido. O conto, ” Filma eu” (p. 103-6) me causou forte revolta. Narra o tratamento que recebe de um repórter de TV que vem gravar entrevista com ele, e a todo momento lhe repete as coisas, “para ter certeza de que você entendeu”…
Recomendo que não percam “Relógios”, “Sebastião”, “Bananas”, “Pensamentos de um ‘Correria'” , “Negócios”. Mas especialmente “Círculo”, e depois me respondam: quanto vale uma nota de R$ 100,00 ?
A registrar, ainda, o belo trabalho que ele tem feito com o registro da LINGUAGEM dessa camada da população. Não, Ferréz não escreve bem, se nos pautarmos pelos critérios que elegem a língua padrão como a norma. Mas lembro que isso não se exige do literário. E ele resgata as gírias, os termos, as estruturas sintáticas, muitas vezes até a possível divisão em parágrafos, num estilo que deve ter deixado de cabelos brancos as duas revisoras: no que mexer, o que manter? E faz mais e melhor: institucionaliza o “num” como a negação oficial da periferia. Maravilha!
Título: Os ricos também morrem
Autor: Ferréz
Páginas: 192
Editora: Planeta
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SINOPSE – Bolonha, Mauro Maurício, Nego Jaime, Júnior, Dona Néia e Sebastião são heróis e anti-heróis que Ferréz criou para histórias curtas. A linguagem ágil, próxima à do rap, transforma-se em literatura. Os “causos” urbanos do cotidiano rude das cidades compõem um mosaico do Brasil real. Para os fãs da verve ácida, direta e reta de Ferréz, o recado do livro é que as injustiças e a desesperança moram ao lado e não do outro lado do Atlântico.
Ana Paula Laux é jornalista e trabalha com curadoria de informação, gestão de mídias sociais e criação de conteúdo digital. Em 2014, lançou o e-book “Os Maiores Detetives do Mundo” (Chris Lauxx). Contato: analaux@gmail.com
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Fiquei curioso para conhecer. Linguagem diferente é essencial de vez em quando, ou sempre.