Outro dia, enquanto conversava com um amigo sobre romances policiais, ele me disse que não conseguia ler os clássicos. Preferia os autores mais novos. – Por qual motivo? – Perguntei. – Um pouco de preguiça, ele disse. Preguiça? Talvez não seja preguiça, mas a dificuldade ou incapacidade de se sentir envolvido em uma realidade tão distante da sua. Chegamos brevemente à conclusão que é de fato um exercício de imaginação ler histórias que se passam nas décadas de 30, 40 ou 50 do século passado. Às vezes, há quase 150 anos.
“Como as pessoas sobrevivem sem telefone celular?” alguns podem questionar. Ou ainda “por que eles estão quebrando tanto a cabeça? É só fazer um exame de DNA que teremos a pista do suspeito”. Bom, e quando esses “truques” não existiam?
A maioria de nossos autores clássicos – o título não é à toa – nos remetem a um passado peculiar, onde talvez a imaginação, a lógica e a observação pessoal (a intuição) desempenhavam maior papel de destaque do que a tecnologia e os recursos disponíveis. Muitos avanços foram feitos em termos de investigação policial no último século. Contamos hoje com sistemas informatizados, bancos de dados, testes de DNA, luzes forenses, impressões digitais, arquivos e reconstruções de imagens dos suspeitos e cenas do crime.
Quando eu estiver velho você ainda vai gostar de mim? Hoje eu digo que sim, daqui há uns anos, não sei dizer. Os mestres como Agatha Christie, Edgar Allan Poe, Georges Simenon, Arthur Conan Doyle e outros, se deleitariam com tanta tecnologia. Eles nos ditaram algumas verdades imortais e encenaram lógicas humanas universais, mas, será que suas obras resistirão ao tempo e continuarão surtindo interesse?
Comecei minha história com a literatura policial lendo os romances do comissário Maigret, de Georges Simenon, e li muitos daqueles romances curtos de 180 páginas. Suas aventuras se passam na França, particularmente em Paris, uma cidade bem diferente do que deve ser hoje, já moderna e reflexo do desenvolvimento econômico. Sem telefones celulares, sem internet, nem mecanismos de busca ou câmeras de segurança, nesta França de Maigret era tudo na base do “deixa um recado para a minha esposa” ou “vou ficar três dias fora, dou um jeito de me comunicar”. São mundos distintos das metrópoles em que vivemos hoje.
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“Caía uma garoa. Uma garoa fria. Ainda estava escuro. Somente lá no final da rua, ao lado da caserna de onde, às cinco e meia, tinha vindo um toque de trombetas e um barulho de cavalos sendo levados ao bebedouros, percebia-se o retângulo pouco iluminado de uma janela: alguém que tinha se levantado cedo ou, talvez, um doente que tivesse passado a noite em claro”
(O testemunho do coroinha, Todos os contos de Maigret, vol. 2, Georges Simenon, L&PM Editores)
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Dias atrás, quando lia um conto de Edgar Allan Poe (vários datam de 1845, por exemplo), me vi em um contexto muito diferente, obviamente. Carruagens, cartas escritas à mão, papiros, lamparinas e longas viagens, e até mesmo as “menos antigas” listas telefônicas (muito comuns nos romances de Maigret), já fazem parte de um sonho para muitos.
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“Em Paris, logo ao anoitecer de um dia borrascoso, no outono de 18…, gozava eu a dupla luxúria da meditação e de uma cachimbada em companhia de meu amigo C. Auguste Dupin, em sua pequena biblioteca…”
(A carta roubada, Histórias Extraordinárias, Edgar Allan Poe, Companhia das Letras, 2008)
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Que contexto, não? Uma biblioteca enfumaçada sem os toques infernais daquele grupo do WhatsApp lhe enviando bobagens fundamentais. Eles deviam ter outras perturbações, acredito. Comentários à parte, como então seguir pistas para um detetive que não tem acesso a um completo banco de dados e fichas criminais digitais? Ou mesmo o simples Google? Como imaginar uma investigação sem a mágica da tecnologia? A interligação de redes de segurança nacionais e internacionais?
Teremos sempre a capacidade de nos deslocarmos da nossa realidade para um contexto tão distinto e ainda nos envolvermos na trama?
Hoje em dia não apenas lemos ou ouvimos as notícias, vemos a filmagem da câmera de segurança de um prédio próximo ou do próprio estabelecimento. Vemos a morte ali, no ato, sem espaço pra imaginar nada. Imagens ainda meio turvas, de má qualidade, nada HD, mas simples e objetivas. Temos ainda novas modalidades de crimes, os virtuais, algo possível apenas com a tecnologia que integramos às nossas vidas.
Como um exemplo claro do avanço das investigações policiais, temos uma série icônica como CSI: Crime Scene Investigation, onde um departamento de criminalística realiza trabalhos regados a análises laboratoriais. Dentro de minha limitada experiência no universo policial, localizo ainda a série de televisão Dexter (inicialmente adaptada dos livros de Jeff Lindsay) na qual a tecnologia tem um papel decisivo (o protagonista é um assassino em série que ao mesmo tempo é analista forense especialista em dispersão de sangue). Muita ciência, muitos recursos, algo próximo, que podemos conceber como real. Talvez não seja à toa que alguns personagens como Lisbeth Salander (uma jovem hacker da Trilogia Millennium) cative tanto novos leitores.
Mas como o universo da criação de romances policiais está lidando com essas mudanças? Um bom exemplo são as adaptações modernas para Sherlock Holmes, como a série britânica para televisão produzida pela BBC, onde nosso detetive (originalmente situado em meados de 1890) é colocado em ação na Londres do século XXI. Possivelmente, clara tentativa de resgatar o interesse por personagens clássicos dando-os toques de contemporaneidade. Tenho certeza que você leitor poderá citar outros exemplos.
Um professor de psicologia um dia me disse que treinava frequentemente “colocar-se no lugar do outro”. Ou seja, para entender uma pessoa ansiosa, se fechava no quarto, respirava em intervalos curtos, buscava a inquietude, beirava a loucura. Coisa de maluco? Com certeza. No entanto, essencial. Caso queira se sentir como há algumas décadas, por exemplo, e entender a magnitude do impacto da tecnologia em sua vida, deixe o seu telefone celular acabar a bateria, desligue a internet e durma sem a televisão ligada. Apenas isso já lhe dará um pequeno alerta de como podemos ser engolidos pela tecnologia.
Pessoalmente, sempre lerei os clássicos. Me fascina sua linguagem, seu vocabulário, seu universo passado, origem de nossos dias. Sinto a nostalgia de algo que nunca vivi. Aprendo a trabalhar elementos com poucos recursos e me imagino sem os acessórios que tanto facilitam minha vida hoje em dia. Talvez nossos clássicos da literatura policial sejam como bons Mozart, Beethoven, Chopin e Tchaikovsky, mestres da música erudita que nunca serão esquecidos.
(Imagens: divulgação)
Psicólogo, mestre e doutorando em Psicologia. Atua no sistema prisional. É músico e leitor assíduo de romances policiais, com aquele lugar especial no coração para Georges Simenon e Raymond Chandler.
Republicou isso em Mais uma Opiniãoe comentado:
“A maioria de nossos autores clássicos – o título não é à toa – nos remetem a um passado peculiar, onde talvez a imaginação, a lógica e a observação pessoal (a intuição) desempenhavam maior papel de destaque do que a tecnologia e os recursos disponíveis.”
Na coluna do mês, Rodrigo Padrini escreve sobre romances policiais clássicos e a influência da tecnologia no gênero.
Eu também sempre lerei os clássicos.
Quanto mais leio, mais vejo como eles são fundamentais e definitivos.
O contexto ou a época é o que um grande autor sempre coloca a seu favor.
E isso a gente só vê nos clássicos.
Pra mim, muitos autores contemporâneos é que deviam se preocupar com sua perenidade, já que há tanta bobagem ultimamente, e tantos que se acham os herdeiros de tal ou qual escritor.
Enfim, o tempo definirá.
Obrigada pela postagem bastante pertinente.
Acho que os clássicos se concretizam com o tempo e o mesmo ocorrerá com alguns autores contemporâneos. Obrigado pelo comentário Adriana!
Verdade, só o tempo dirá. Obrigada a vc, abraços