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O Brasil no precipício literário

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Os livros ao redor do mundo ou qual o problema com as editoras brasileiras?

 

I. Frangalhos literários

Desembarquei em Roma no final de junho para rever meu pai e irmãos após um hiato de oito anos. Além desse detalhe familiar no retorno ao Velho Continente, algo sacolejava dentro de mim: uma vontade enorme de conhecer as livrarias europeias e a oferta literária no berço da civilização; conhecer in loco o que os europeus leem e emplacam nas listas dos mais vendidas.

A primeira parada foi em Portugal, onde uma espera de duas horas pela conexão no aeroporto de Lisboa me permitiu fazer um pit-stop estratégico na Fnac. Comprei ‘O amor é fodido’, de Miguel Esteves Cardoso, basicamente pelo título irresistível. O livro estava em destaque logo na entrada do estabelecimento, o que me garantiu boas risadas ao imaginar como o Brasil reagiria se alguém como o Gregório Duvivier fizesse um livro com esse título.

Escondidos num fiapo de prateleira nos fundos da lojinha-aperitivo, os romances policiais espantavam pela diversidade: basicamente todos os autores americanos contemporâneos tinham seu espaço. Os clássicos, porém, pareciam sequer um dia ter existido. Pensei que fosse algo pontual.

Ledo engano.

Já em Roma, tirei dois dias para visitar livrarias que me foram recomendadas por uma colega ítalo-húngara. Nas duas livrarias que visitei em Trastevere, espécie de reduto boêmio às margens do rio Tibre, os gialli (amarelos em italiano, como são conhecidos os romances policiais na terra do espaguete – a partir de 1929 a literatura pulp passou a ser publicada por lá com capa nessa cor) tinham uma prateleira só para si. Autores como Stephen King, Patricia Cornwell, John Grisham e os europeus Lars Kepler, Camilla Lackberg e Arnaldur Indradsson tinham suas obras completas traduzidas para o idioma de Alighieri. Dois livros recentes de King – Revival e Mr. Mercedes – e o último volume da série Scarpetta de Cornwell – Flesh and Blood – estavam estrategicamente posicionados com edições capa dura no meio dos últimos lançamentos.

Aquilo mexeu comigo.

O idioma italiano, menos ainda que o português, só serve para um público específico. Como era possível que eles já tivessem à disposição todo esse material?

Decidi consultar meu pai.

– Aqui ninguém lê – ele disse. – Se você diz que lê as pessoas te olham torto, não entendem como é possível ficar com a cara grudada num livro durante horas e horas. Eu, por exemplo, leio um livro por mês e já estou muito acima da média do país.

Uma das hipóteses, pensei num arroubo de philipmarlowismo, já está descartada: os italianos não justificam a oferta. Não valeria a pena, portanto, colocar imediatamente nas prateleiras material que sai primeiro lá fora. O mesmo não pode ser dito, por exemplo, da Argentina. Henning Mankell tem toda sua obra disponível numa livraria furreca no centro de Bariloche. A justificativa é simples: o idioma espanhol é enorme, o que se traduz para a Espanha pode ser comercializado na Argentina e por aí vai.

A dúvida, portanto, persistia em mim.

Resolvi tentar sair dos gialli e partir para outros autores.

Literatura brasileira? Em todas as livrarias a resposta foi parecidíssima: ou Jorge Amado ou Paulo Coelho, se bem que esse último não é propriamente uma literatura brasileira. Encontrei volumes de Luiz Ruffato e Vanessa Barbara, e só. Nem Daniel Galera, o mais incensado da nova geração, aparecia nas prateleiras. Os livreiros também pareciam desconhecer seu nome.

A crise se agravava dentro de mim. Como um país que tem Machado de Assis, Graciliano Ramos, Sérgio Porto, Rubem Fonseca, Millôr Fernandes e Jorge Amado é tão vazio no comércio literário europeu?

Arrisquei dois dos meus autores preferidos: Roberto Bolaño e Philip Roth. O primeiro, morto em 2003 e maior autor latino das últimas décadas, não foi fácil de encontrar, mas quando a busca se revelou frutífera, escondido num estabelecimento em Trastevere, tive uma surpresa daquelas que gelou a espinha: 2666, Amuleto, Putas Assassinas e Estrela Distante já haviam sido traduzidos para o italiano. ‘Una novellita lumpen’, último romance publicado em vida, inédito no Brasil, também estava lá.

Com Philip Roth não foi diferente. Toda a obra do maior autor americano vivo, repito, toda a obra, estava disponível em italiano.

Tal qual Bartleby, eu preferia não (acreditar).

O tiro de misericórdia foi lembrar, segurando o pesado volume de 2666, melhor livro que já li em toda a minha vida, que em Portugal Roberto Bolaño também foi traduzido. Li ‘La Literatura Nazi en Americas’ em inglês, mas dois meses depois, perambulando pela Livraria da Travessa de Botafogo, encontrei um exemplar em português. Levei para casa e dei para minha avó ler.

Naquela época eu não sabia, mas meus questionamentos já faziam parte de um cenário muito maior.

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II. Bartleby à deriva

Nas últimas semanas o Facebook foi tomado por uma enxurrada de posts indignados sobre diversos assuntos – cantor sertanejo morto e a cobertura sensacionalista da mídia; Zeca Camargo comparando a sociedade aos livros de colorir; divulgação de dados mostrando que o brasileiro lê 1,7 livro por ano.

Em meio ao que alguns definiram (sabiamente) como pororoca de chorume, o cenário me pareceu bastante claro: é óbvio que não se pode esperar muita leitura de uma sociedade fragmentada cultural e politicamente, uma sociedade em que livros de colorir são o principal faturamento do mercado editorial no primeiro semestre. Alguns defensores da nova “terapia” dizem que os livretos ajudam pacientes com Alzheimer e que não se pode cobrar erudição o tempo todo, mas o que se tem observado sequer passa de requerimento de erudição. Trata-se de um sintoma que invariavelmente chega ao dilema Tostines: o mercado editorial nacional é ruim porque a oferta é ruim ou porque o público é ruim e não tem o menor interesse?

Obviamente, é uma discussão ampla demais para um único artigo, mas potencialmente forte para que se apresente uma subdivisão do dilema Tostines: as editoras abandonam os autores por falta de interesse do público ou o público que abandonou os autores?

A Companhia das Letras, detentora dos direitos de Philip Roth e Bolaño, por exemplo, nunca deu mostras de publicar os volumes restantes desses autores – no caso de Roth, edições dos anos 70 chegam a valer mais de trezentos (!) reais no site Estante Virtual. Patricia Cornwell e Henning Mankell, publicados pela mesma casa, estão à deriva há um bom tempo – o último livro do sueco lançado por aqui foi A Quinta Mulher, em 2014, publicado lá fora em 2000(!). A defasagem, contudo, não é exclusividade da casa paulista, apontada por muitos como a melhor editora do país. A carioca Record não soltou todos os livros do rei do scandi-crime, Jo Nesbo, e, caso não fosse anunciada a sequência 50 anos depois, continuaria a deixar seu braço José Olympio sem abastecer as livrarias com O Sol é Para Todos, que vende 1 milhão de exemplares anualmente em língua inglesa. Um milhão de exemplares anuais é bastante coisa. Os brasileiros não tem o mesmo direito dos anglófonos? Tem. Tanto tem que a reedição veio com destaque e vendas expressivas segundo me contaram livreiros.

Há quem argumente que faltem tradutores. Ou que o Brasil só publica material com tratamento artístico impecável, diferentemente dos paperbacks estrangeiros, o que inviabiliza uma produção em larga escala (verdade, nunca vi publicarem livros tão bonitos como os brasileiros, mas será que precisamos de livros bonitos? Será que uma simples obra do Stephen King, ou até mesmo dos prolíficos best-sellers James Patterson e Harlan Coben, não pode ser comercializada num formato mais barato, tipo paperback? Não faz sentido tanto atraso, tanta sonolência. Quer dizer, só se publica algo com eficiência e rapidez quando se trata de 50 Tons de Cinza ou As Crônicas de Gelo e Fogo? Complexo de vira-latas na literatura? Jura?)

Quando levantei no Facebook a polêmica dos livros de colorir, fui tido como conservador, elitista, academicista, etc., me disseram que o mercado seria fomentado – e muito – com a venda desse tipo de “obra”. Pois bem, agora que os balanços foram divulgados e o mercado faturou horrores, cadê o investimento?

Pior que a falta de publicações é o silêncio. Tentei contato diversas vezes com as editoras. Não há uma resposta padrão. Não há calendário de lançamentos. O Brasil parece estar atrasado até na diversão mais simples, botar-os-olhos-no-papel-e-vivenciar-uma-história, como se não fosse digno de acompanhar o ritmo de países que só tem status histórico mas são igualmente pobres em consumo literário.

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III. A imutabilidade da pátria

O cenário é de caos. Vivemos num circo sem pão, enclausurados numa névoa que teima em se dissipar. Nossa maior conversa literária da atualidade é saber se Mário de Andrade gostava de homens ou não. A que ponto chegamos. Resta alternativa senão seguirmos sendo Bartleby e abraçando nós mesmos?

Somos os únicos capazes de permanecer agarrados a um fiapo de esperança e idealismo, seja ele qual for, mas se depender de editoras como a 34 e a Cosac Naify, o público brasileiro terá acesso à mais alta literatura. A primeira vem publicando obras da literatura russa com posfácios e traduções atualizadas, o que é uma bênção. A outra, tradicionalmente tida como editora de conteúdo majoritariamente artístico, aposta no público que não tem problema em consumir coisas densas, caprichando nas edições e arriscando reedições da obra de Faulkner.

Os maiores destaques, porém, são as pequenas/médias Iluminuras, Rádio Londres e DarkSide. Enquanto a primeira traz pérolas de James Joyce – correspondências, poemas e dezenas de páginas com ensaios acadêmicos sobre o autor de Ulysses –, as duas últimas são novatas no mercado editorial, mas isso não significa que a qualidade seja pouca, au contraire. Surpreendendo ao publicar Stoner, romance de John Williams publicado em 1965 e idolatrado por gente como Ian McEwan e Tom Hanks, a Rádio Londres trouxe aos brasileiros a oportunidade de conhecer Andrés Caicedo e Abasse Ndione. Ambiciosa, a editora carioca publicará ainda em 2015 o vencedor do PEN/Faulkner, Preparation For The Next Life, de Atticus Lish.

Na outra ponta, a DarkSide apostou nos jovens e editou Psicose, Os Goonies, Tubarão, O Demonologista e a dramatização da trilogia Star Wars, garantindo uma fatia do mercado que não hesita em ler páginas obscuras, porém frescas e acessíveis, na contrapartida dos açucarados romances de Nicholas Sparks publicados pela Novo Conceito e Arqueiro.

A já consagrada Intrínseca se mantém como uma das lideranças sendo versátil: se por um lado publica os best-sellers de Gillian Flynn e Joel Dicker, por outro imprime vencedores do Pulitzer – como é o caso de Anthony Doerr e Jennifer Egan – e o boom recente Nic Pizzolato, criador da série True Detective.

Fica a questão, portanto: se o mercado editorial nacional é tão rico e ao mesmo tempo tão escasso, publicando coisas pinçadas ao invés de toda a bibliografia de um autor consagrado, por que lemos 1,7 livro por ano? Por que nomes como Paul Auster, Thomas Pynchon e William Faulkner não têm toda sua obra publicada no Brasil? Por que Cormac McCarthy e James Ellroy ainda não mancharam nossas bibliotecas com o sangue que escorre das páginas? Cadê nossos autores latinos sendo publicados por aqui também? Só a Rocco e a série Otra Lingua são capazes de nos ajudar a compreender o panorama sul-americano?

Estaria James Joyce certo, portanto? We can’t change the country, so let’s change de subject. É isso? Ok.

Changemos o subject, pois.

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View Comments

  • Mateus, boa reflexão, apesar de tudo o livro resiste. Hoje vejo meus sobrinhos adolescentes migrando do Harry Potter pros quadrinhos, outros apesar de incentivos não desgrudam do tablet. Eu particularmente adoro nossas publicações caprichadas.

  • Boa reflexão! Há muitos problemas com a publicação dos autores, e não é só graças ao pouco interesse do leitor comum. Muitos editores, mesmo os considerados intelectuais, vêem o livro como uma mercadoria a mais, e só. Não se sentem parte do cenário cultural, a não ser quando é de seu interesse financeiro. Isso é um retrocesso mesmo.
    Abçs e obrigada pelo post, adorei.

  • Brilhante! São duas simples opções comerciais: muitos autores (diversidade) e poucos volumes impressos (Portugal). Não é muito fácil achar alguns lançamentos. Ou: poucos autores (Bestsellers) e bom número de volumes impressos (Brasil). Livraria vendia cultura no tempo do vovô. Transformou-se em comércio como qualquer outro, deve dar lucro, caso contrário fecha. Isso tem acontecido no Rio de Janeiro (junto com os sebos). Todo ano vou a Lisboa e morro de inveja. Não dá pra trazer tudo. Em 1986, estive em Cuba - não tínhamos relações diplomáticas. Fiquei de boca aberta ao constatar a diversidade e o baixo custo dos livros técnicos. Como podia um país com 8 milhoes de habitantes ter livros atualíssimos. Depois descobri: eles traduziam e não pagavam direitos autorais. Acho que muitos poucos ainda têm o prazer de curtir uma livraria. Preferem ficar apertando botões e olhar para o vídeo.. Parabens pelo discurso.

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