Por Mateus Baldi – Há várias colunas eu já manifestei meu profundo descontentamento com a atual fase da literatura policial – não só no Brasil: no mundo! São tramas previsíveis, detetives ou amargurados demais, ou bonzinhos e idealistas e cultos demais, ou ainda aquelas séries intermináveis em que cada livro é um procedural que só serve pra alimentar saudadinha dos fãs, sem acrescentar nada à mitologia do personagem principal.
Nesse cenário caótico, em que toda semana alguma editora solta uma nova promessa do scandi-crime ou sucessora da Agatha Christie (quase sempre ruins, diga-se de passagem), é uma felicidade imensa constatar que Dennis Lehane ainda se mantém no topo.
Nascido em Boston, o americano que estreou com Um Drink Antes Da Guerra retrata há mais de duas décadas uma cidade fraturada pela criminalidade: mesclando os guetos irlandeses, italianos e escandinavos/russos que compõem a fauna bostoniana, a bibliografia de Lehane é riquíssima em construir bons personagens que, mesmo a milhares de quilômetros dos leitores, conseguem fazer bater aquela identificação; mas mais do que isso, o grande mérito da carreira de Dennis é saber que um bom autor policial não se rende ao procedural ou aos casos tão brutais quanto insossos.
Se por um lado mantém duas séries mais distintas impossíveis – detetives particulares Kenzie e Gennaro, o Nick & Nora Charles dos nossos tempos; as aventuras de Joe Coughlin, um mafioso dos anos 1920/1940 –, por outro arrisca em obras bissextas que mantém suas características narrativas apesar da ousadia. Foi assim com Mystic River, Ilha do Medo e A Entrega, todos sucessos de bilheteria no cinema.
No caso do último, a coisa é um pouquinho mais intrincada, vamos lá: criada para uma antologia de contos noir, The Drop saiu nos States em 2009 no formato de conto sob o título Animal Rescue. Quando Hollywood decidiu filmá-la, ele enxergou ali um potencial literário muito mais amplo e fez um livro que não sabe se é novela ou romance. Se por um lado tem quase 200 páginas, configurando-se estilisticamente como um romance, por outro a narrativa ágil e a ausência de um plot muito amplo acabam restringindo o enquadramento. Por mim, é um livro em suspensão.
A trama é simples: Bob, um solitário bartender, encontra um filhote de pitbull espancado numa lata de lixo e começa a cuidar do bicho junto de sua vizinha, Nadia. Quando um velho conhecido dela – e criminoso habituée do bairro –, Eric Deeds, aparece na jogada, as coisas ficam pretas e todos se metem numa grande enrascada com muitas trapalhadas e confusões.
Misturando subplots desnecessários – romance entre policiais que pouco se conectam à história de fato; a igreja que vai ser desapropriada, etc. – a personagens densos – Cousin Marv foi o último papel de James Gandolfini antes de morrer, e pelo menos aqui surge como alguém imponente –, Lehane consegue equilibrar essa ciranda com metáforas estapafúrdias e doses cirúrgicas de violência: quando tem, tem mesmo.
O final é uma belezinha que só e serve para comprovar que: sim, a literatura policial respira. Ainda que seja preciso espancar cachorros para isso.
PS: a tradução beira o sofrível em alguns momentos, sem se decidir entre o estilo originalmente fluido do autor ou algo um tiquinho mais rebuscado. Assim, temos pérolas como trela no lugar de COLEIRA – sério, quem autorizou TRELA no lugar de COLEIRA, alguém coloca TRELA no lugar da COLEIRA do cachorro? eu tô inconformado com isso até agora – e face no lugar de rosto. O cara toma um tapa no rosto e o tradutor mete um bateu em sua face como se estivéssemos lendo José de Alencar. Pelamor. Mas isso são detalhes – que só menciono porque no próprio site da editora já teve gente reclamando de traduções ruins em livros da série Kenzie/Gennaro. Mas isso é papo pra outra coluna…
SOBRE O LIVRO
Título: A Entrega
Autor: Dennis Lehane
Tradução: Luciano Vieira Machado
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 184
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SINOPSE – Bob é um bartender solitário e desiludido, que tenta encontrar razões para continuar vivo. Três dias depois do Natal, seu marasmo é interrompido por um latido abafado. Esse filhote de cachorro mudará para sempre a sua vida. Nessa mesma noite, ele conhece Nadia, uma garota sofrida que, como ele, busca algo em que acreditar. Unidos pelo desejo de resgatar o cachorro, Bob e Nadia estreitam seus laços. Quando as coisas parecem ter tomado rumo, eles se encontrarão em um jogo sujo, que envolve a máfia chechena, um assassino, dois trambiqueiros profissionais, um policial e o próprio dono do cachorro. Em A entrega, Dennis Lehane volta às ruas de Boston num explosivo enredo de morte e traição.
Nasceu em 1994. É escritor e roteirista. Fundou a plataforma literária Resenha de Bolso, foi editor de cultura da revista Poleiro e colaborador de literatura no site da Piauí.