resenha

A grande arte do crime – Adeus, minha querida, de Raymond Chandler

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Philip Marlowe strikes back ou a alta literatura banhada de sangue e sujeira

 

Por Mateus Baldi – Jean Paul Sartre certa vez disse que A Noite dos Desesperados era a primeira obra existencialista norte-americana. Abordando temas espinhosos sob uma aura de loucura, o romance de 1935 realmente se encaixava na filosofia do francês. Mas nenhum dos protagonistas criados por Horace McCoy seriam capazes de imprimir tanto existencialismo & questionamento & mindfuck quanto Philip Marlowe.

Resultado do que o próprio Raymond Chandler chamava de canibalização de contos, onde elementos de pulps publicadas na revista Black Mask ao longo dos anos 1930 eram metamorfoseados em enredos maiores, as histórias do detetive particular Philip Marlowe tiveram início em 1939 com a publicação de O Sono Eterno. Cínico, mulherengo e egoísta, Marlowe não é exatamente o tipo que faz peso na Terra, mas está quase lá. Vive um dia após o outro sem nada a perder. Protagonista de sete romances originalmente escritos por Chandler – haveria spin-offs de gente como Robert Parker e John Banville –, o anti-herói que faria Sam Spade choramingar feito uma criança vivia na fictícia Bay City, uma cidade tão corrompida quanto pretensamente glamourosa.

 

 

Segundo livro da série, Adeus, minha querida foi publicado um ano após o sucesso de “The Big Sleep”. Depois de resolver o caso dos Sternwood, encontramos um Philip Marlowe novamente metido com casos pequenos. Na pista falsa de um barbeiro grego, tromba com Moose Malloy, o Alce, na entrada de um bar de negros. Numa sequência formidável, Chandler nos brinda com o melhor da humanidade marlowiana, algo que seria melhor explorado no magnum opus O Longo Adeus, de 1953. Compadecido da causa de Moose, ex-presidiário grandalhão que está atrás de sua antiga amante, Phil resolve investigar o caso. Contando com a ajuda de alguns policiais escroques e uma garota um tanto quanto avant-garde para a época (Anne Riordan, eu te amo, me beija, casa comigo, pelo amor de deus), Marlowe embarca na tradicional odisseia do hard-boiled: tipos escusos, mulheres fatais e gângsteres suaves feito seda, até se deparar com um final explosivo onde tudo de fato não era o que parecia.

Numa carta pré-Long Goodbye, Raymond Chandler diz que esse “Farewell, my lovely” é seu melhor livro. Embora eu honestamente prefira The Big Sleep (pelo discurso final e outros motivos – spoiler: as irmãs Sternwood são um deles), a história flui de modo soberbo. Chandler, possivelmente um decorador frustrado, sabe ambientar uma trama, construir personagens complexos e cenas memoráveis. O capítulo 31, meu preferido, se desdobra com um diálogo de Marlowe em paralelo a um besouro – motif que persiste até a última página, e já que estamos falando de última página, a frase final me fez literalmente chorar, confesso. Chandler, é bonito de ver, foi trilhando um caminho cujo fim era previsível. Playback, último romance de Marlowe, é uma adaptação de um roteiro frustrado – e considerado seu pior romance. Ora, depois de O Longo Adeus ficaria difícil dar ao público algo melhor que a amizade com Terry Lennox.

Sempre comparado a Hammett, a quem tinha como mestre, Chandler se superava a cada novo conto, a cada novo romance, a cada ensaio. Seu próprio editor, Albert Knopf, concordava. Se Sam Spade fundou um gênero que persiste até hoje, Philip Marlowe sedimentou a muralha que separa o mau do bom romance policial. O mau romance policial é aquele dos salões, preguiçoso, com poucos personagens e quase nenhuma ação, puramente dedução; o bom, não – o bom policial corre feito sangue, desliza pelas ruas e saias e nudezas da humanidade e da alma como se fosse água. Chandler era o gênio da raça. E isso fica ainda mais evidente agora que a Alfaguara está relançando toda a sua obra com tradução, prefácio e organização de Braulio Tavares.

Brutalidade, existencialismo, sarcasmo, cinismo e críticas a Hemingway. Chandler sabe muito bem como fisgar o leitor. Vai ler esse farewell? Leia até o final. Eu mesmo achei que o livro não fosse ser isso tudo – o segundo ato engana bastante, mas esse é o truque do bom policial: enganar. Marlowe recebe as pistas mas não conta seu raciocínio. Age na página x e mostra na página x+30 que sabia direitinho o que fazia com aquela informação aparentemente inútil. Atentem aos detalhes. Se Agatha Christie e Conan Doyle abusavam deles de modo quase caricatural, incrível no sentido mais literal da palavra, Raymond Chandler não; usa-os no momento certo, para aumentar a temperatura do já sangrento hard-boiled.

Ah, essa edição acompanha, também em tradução de Braulio, o clássico ensaio A Simples Arte do Crime, em que ao longo de vinte páginas Chandler discorre sobre como escrever uma boa história policial. Não sem meter o malho em praticamente toda a fauna de escritores policiais contemporâneos, é claro – até o best-seller O Caso dos Dez Negrinhos, de Agatha Christie, é minuciosamente espinafrado.

Imperdível.

 

* Livro cedido em parceria com a Companhia das Letras.

 

SOBRE O LIVRO

Título: Adeus, minha querida
Autor: Raymond Chandler
Tradução: Bráulio Tavares
Editora: Alfaguara Brasil
Páginas: 312
Ano: 2016
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SINOPSE – Durante um caso de rotina, o detetive Philip Marlowe conhece “Moose” Malloy, o Alce, um brutamontes cruel recém-saído da prisão. Malloy está disposto a tudo para encontrar Velma, uma cantora de cabaré com quem mantivera uma relação. Em paralelo, o investigador se vê no meio de um caso de chantagem e assassinato, ligados ao roubo de um colar de jade.

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