ENTREVISTA | Ricardo Lísias e o Inquérito Policial

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Existem artistas que se inspiram tanto em seus mestres que passam a imitá-los. Escritores, por exemplo, absorvem certos maneirismos dos clássicos, o que os aproxima da alta literatura. Kafka é um dos mais imitados, mas existe pelo menos um escritor no mundo que odiou ser comparado ao gênio tcheco: Ricardo Lísias.

O motivo não é estético, é jurídico. Lísias viveu o inferno quando foi envolvido numa situação absurda, típica de Kafka. Foi denunciado pelo Ministério Público e investigado pela Polícia Federal por conta de uma denúncia de que estaria falsificando documentos em seus livros sobre o Delegado Tobias. Isso mesmo! Levaram tão a sério a narrativa de Lísias que não perceberam se tratar de ficção. A agonia se prolongou por alguns meses e o escritor despertava todos os dias de sonhos intranquilos. De repente, prevaleceu o bom senso e o processo foi arquivado.

Outros escritores teriam mantido distância da encrenca, mas isso não é do feitio do inquieto escritor paulistano de 40 anos. A via-sacra jurídico-policial fez com que Lísias escrevesse Inquérito Policial: Família Tobias, sexto volume do Delegado Tobias, que – mais uma vez! – borra as fronteiras entre produção literária e realidade. A obra é o que se pode chamar de um livro-objeto. Não tem cara de livro, mas de processo judicial mesmo, com capinha azul clara, brasão oficial da justiça, etiqueta de identificação e folhas apensadas. Algo a ser reverenciado por leitores e artistas-plásticos, já que extrapola a leitura convencional, provocando também uma experiência táctil.

Lísias estava exultante na semana em que concedeu esta entrevista ao literaturapolicial.com. Além do arquivamento do processo real, conferia na gráfica as provas finais de Inquérito, a ser lançado nos próximos dias. Respondeu dois lotes de perguntas por e-mail e ainda teve fígado e coração para alimentar outras polêmicas nas redes sociais. Sim! Ricardo Lísias tem lado: é contra o impeachment de Dilma Rousseff e critica o relançamento de Mein Kampf por editoras brasileiras. Sim, Lísias tem coragem. Credenciais raras entre os escritores nacionais contemporâneos. Talvez por isso fique na mira de muitos…

 

 
Recentemente, você iniciou uma experiência interessante com os livros do Delegado Tobias. Os cinco volumes foram lançados apenas no formato eletrônico, e eles compõem um mosaico inusitado e incompleto de uma investigação sobre quem matou o escritor Ricardo Lísias!!!! O que o levou a recorrer à literatura policial e como foi o seu processo de criação nesse caso?
O formato e-book era adequado para a intenção de incorporar a figura do leitor à trama. As reações à narrativa iam fazendo parte dos próximos acontecimentos dela própria. Então, precisava ser algo veloz como o livro eletrônico. Do mesmo jeito, para o leitor ficar instigado a participar, nada como um mistério. Daí o formato de texto policial. O primeiro volume foi publicado sem que houvesse o aviso de que se tratava de um folhetim. Então, com as reações, e sem explicitar isso, desenvolvi enquanto o primeiro volume ia sendo lido, os seguintes. O episódio dos documentos judiciais deu fôlego às reações. Curiosamente, foram eles, seis meses depois, que deram nova vida à narrativa, agora nas amarras desagradáveis da realidade.
 

Só o absurdo explica, mas o fato é que os livros do Delegado Tobias quase levaram a uma condenação sua na justiça. Felizmente, o processo foi arquivado, mas sabemos que ele deixa marcas. Passada a tempestade, como você avalia o episódio?
Acho que começou muito mal, tanto pela má fé na denúncia (já que os denunciantes, ao menos a maioria, sabiam se tratar de uma obra de ficção – e ela era no momento um best-seller: o folhetim sempre esteve entre os ebooks de ficção mais vendidos enquanto o projeto acontecia) quanto pela investigação inicial catastrófica feita pela Procuradoria Geral da República, que não notou se tratar de obra de ficção. Bastava ter digitado no Google algo como “Ricardo Lísias Delegado Tobias” que todo o gasto de energia e dinheiro público teria sido evitado. Por sua vez, acho que terminou muito bem, tanto por conta da decisão lúcida e profunda de arquivamento quanto pela criação de uma jurisdição sobre forma literária e artística.

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Lísias viveu o inferno quando foi envolvido numa situação absurda, típica de Kafka. Foi denunciado pelo Ministério Público e investigado pela Polícia Federal por conta de uma denúncia de que estaria falsificando documentos em seus livros sobre o Delegado Tobias.

 

Ao invés de se abater com os danos causados pelo que podemos chamar de “Incidente Tobias”, você converteu o desfecho em outro livro: Inquérito. Para além de uma desforra ou desabafo, como este livro dialoga com a sua obra?
Acho que dá para listar um grupo de questões que me interessam: o Brasil, a América Latina, as instituições, o poder, a corrupção da vida cotidiana, os desarranjos psíquicos e talvez sobretudo as possibilidades expressivas da literatura ou agora mais amplamente das artes em geral.
 

Após Inquérito, teremos mais incursões de Ricardo Lísias na literatura policial?
A família Tobias por certo combina muito bem com o mistério… Com certeza, em algum momento, voltarei a ela, talvez no ano que vem. A mãe do delegado Tobias, por exemplo, morreu em circunstâncias muito estranhas, o que sem dúvida é algo que precisa ser explorado melhor. No Inquérito, há a árvore genealógica de toda a família.

 

Eu gostaria de ressaltar que no Brasil as polêmicas literárias me parecem sempre lidar com a ocupação de espaços. Vou esclarecer: as pessoas discutem basicamente um único tema, que é o de um autor ou um grupo de autores ocupar um espaço que outros autores ou grupo de autores julgam que por algum motivo não deveria estar com eles. Há questões muito mais importantes a serem debatidas, mas ninguém se aproxima delas.

 

 

Aliás, o que você pensa de literatura de gênero? Isso o incomoda? De que maneira isso afeta o seu trabalho como escritor?
Nunca pensei muito nesse tipo de questão e muito menos tive preconceito na hora de ler. Uma parte considerável da literatura argentina, por exemplo, pode ser considerada “policial”, caso possivelmente de todos os romances de Ricardo Piglia, um de meus autores preferidos. Então, não me incomodo de nenhuma forma com o que possa ser esse ou aquele gênero. O que eu realmente gosto é de ler.
 

O “Incidente Tobias” borrou pra valer as fronteiras entre arte e vida, literatura e realidade. Muito disso se deve mais à ignorância das autoridades policiais do que qualquer outro motivo. Mas de que forma esse episódio contribui para um debate sobre os limites da literatura?
Na verdade, a confusão começou na Procuradoria Geral da República, a partir de uma denúncia feita na Justiça Federal. Não foi a polícia. Quando o caso chegou à Polícia Federal, o estrago já havia sido feito pelo Ministério Público Federal, que foi quem conduziu a investigação contra o livro – sem notar que era um livro… Eu não quero me arriscar em discussões teóricas sobre literatura ou arte em geral, pois acho que foge ao meu controle e também não me sinto em um lugar capacitado para isso, já que sou autor do livro e depois quem teve que responder ao inquérito. Mas acho que o episódio diz muito sobre o atual Poder Judiciário brasileiro.

 
A autoficção é um elemento bastante presente em seus livros. Outros autores contemporâneos também fazem uso, cada vez mais. Terá a autoficção se tornado um cacoete na ficção atual?
É a recepção de primeira hora que se apropriou do termo e por facilidade o vulgarizou. É um fenômeno brasileiro: muito do que começou a ser chamado por aqui de “autoficção” não se enquadra em nenhuma das definições conhecidas. As pessoas encarregadas de ler um livro logo após o lançamento e redigir um texto de três mil caracteres sobre ele viram a oportunidade de simplificar seu trabalho lançando mão do conceito sem ter a menor ideia do que ele significa. Daí em diante, livros muito diferentes, da concepção à realização final, foram tratados como autoficção… É um cacoete crítico sem nenhum tipo de ligação com as próprias obras. A questão é que muitos escritores escrevem justamente para satisfazer essa crítica de primeira hora e passaram a responder a ela. A partir de então, tudo se tornou um torvelinho em que nada mais se aproveita. Ao meu projeto esse tipo de coisa não diz respeito.

 


 

Você está na lista da Granta como uma das promessas e dos novos valores da literatura brasileira. O lançamento da edição brasileira (em 2012) causou discussões no meio editorial, como não poderia deixar de ser. Estar na lista ainda pesa?
De vez em quando alguém cita. Mas eu era um dos mais velhos e experientes da lista, então a polêmica passou ao largo do meu nome. No meu caso, serviu para publicar em alguns países um conto de que gosto muito, “Evo Morales”. Ainda assim eu gostaria de ressaltar que no Brasil as polêmicas literárias me parecem sempre lidar com a ocupação de espaços. Vou esclarecer: as pessoas discutem basicamente um único tema, que é o de um autor ou um grupo de autores ocupar um espaço que outros autores ou grupo de autores julgam que por algum motivo não deveria estar com eles. Há questões muito mais importantes a serem debatidas, mas ninguém se aproxima delas.
 

Que questões você gostaria de debater então?
Acho que é preciso discutir, por exemplo, os mecanismos de legitimação autoral, que muitas vezes – ou na maior parte das vezes nos últimos anos – parecem ser extra-literários. Por exemplo: por qual motivo nas duas últimas décadas se convencionou que os autores relevantes seriam todos brancos, vindos de uma mesma classe social? Vale notar que nem sempre foi assim no Brasil. Por qual motivo uma massa grande de autores resolveu produzir uma literatura livre de incômodos? Há algum tipo de impulso que os ampara.
 
Como você avalia a produção literária brasileira atual? Quem você destaca e acha subestimado?
Já não acompanho minuciosamente há algum tempo, então não tenho como fazer uma avaliação global. Simplesmente leio aqui e ali os livros que mais me parecem atraentes, fazendo uma aposta antes de comprá-los: esse eu acho que vou chegar até o final. Nos últimos tempos achei muito interessante “Só faltou o título”, de Reginaldo Pujol Filho, e “Uma selfie com Lênin”, de Fernando Molica. Acompanho com grande interesse a produção recente de Elvira Vigna e Maria Valéria Rezende. Também gostei do romance novo de Micheliny Verunschk. Como eu disse, porém, não tenho uma visão ampla.
 

Você acompanha a literatura policial? Nosso blog costuma perguntar aos escritores por indicações no gênero. Que autores e obras da literatura de crime e mistério o leitor não pode deixar de conhecer?
Na verdade, não acompanho um certo tipo de literatura em específico, tenho interesse em textos pontuais. Mas acho que é preciso conhecer os clássicos, qualquer que seja a inclinação deles. Como ser possível não indicar Conan Doyle, por exemplo? Também li algumas coisas da Patricia Highsmith quando estava, há anos, traduzindo uma biografia dela. Li os mais interessantes da Agatha Christie e, há algumas semanas, O longo adeus de Raymond Chandler.

[Fotos: Divulgação]

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