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Matadouro de Unicórnios, de Juscelino Neco

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RECEITA PARA FAZER MONSTROS – Não é exagerado dizer que os quadrinhos de crimes mudaram pra pior a história dos gibis nos Estados Unidos. Não porque fossem ruins ou porque incentivavam os delitos. A razão é que esse subgênero – bastante popular nas décadas de 1940 e 1950 – forneceu as desculpas mais convenientes para que o moralismo e a caretice impusessem mecanismos de censura à indústria. Diante de rios de sangue, violência extrema e perversidade, a Associação Americana de Revistas de Quadrinhos criou um código de conduta para a autorregulação do setor. Assim, o gibi que era “aprovado” saía com um selo na capa, atestando sua qualidade e liberando para o consumo da garotada. Foi triste!, e as editoras tiveram que ceder para sobreviver. A histeria dos conservadores queria enquadrar não apenas os quadrinhos de detetive e mistério, mas também os de terror, o que quase provocou a extinção em massa de lobisomens, vampiros, noivas assassinas e estripadores em geral.

Se vivêssemos nos Estados Unidos e se o Comics Code ainda tivesse a força que teve por mais de meio século, “Matadouro de Unicórnios” (Ed. Veneta, 2016) não receberia o tal selinho, e seu autor – o sanguinário Juscelino Neco – estaria em maus lençóis. A HQ conta, sem economizar nos detalhes escabrosos, como um escritor frustrado se torna um assassino serial. Gonçalo Alcântara parece um sujeito comum, com uma vidinha bem ordinária e um futuro bastante incerto. Mas de repente, se vê cortando jugulares, esmigalhando ossos e arranjando formas seguras para se livrar dos restos de suas vítimas. Nessa jornada, vê a sanidade pelo retrovisor. Aperfeiçoa suas técnicas de abate, capricha no labirinto das mentiras e se dá ao luxo de enveredar pelo canibalismo. O desfecho é vigoroso e surpreendente.

Mas falta um detalhe fundamental nessa sinopse: “Matadouro de Unicórnios” ofecere uma generosa e bem-sucedida mistura de horror e humor. Os diálogos são afiados, as cenas, bem costuradas, e as piadas funcionam como estocadas, ao menos na primeira metade do livro. Sarcasmo e ironia veloz ajudam a moldar o texto do autor, bem como exagero e escatologia forjam o discurso de suas imagens. Esses elementos já estavam presentes e em abundância em “Zumbis para Colorir” – um bestseller internacional! – e “Parafusos, Zumbis e Homens do Espaço”, trabalhos de fundação de Juscelino Neco. Quem o conhece, sabe que vai encontrar mutilações diversas, um festival de vísceras e piadas de estarrecer.

 

A primeira tentação é considerar “Matadouro de Unicórnios” uma história de violência gratuita. Mas volte algumas páginas e perceba como se equilibra a arte: em preto e branco, sem recorrer a nenhuma paleta de cores e com um traço caricato próprio do cartum, a violência gráfica fica ligeiramente mais leve, e se torna violência estilizada. O sangue que emporcalha o chão após o brutal assassinato não é vermelho, embora viscoso. Os ossos partidos, os nervos dilacerados, e o olho que escapa da cavidade craniana têm uma plasticidade perturbadora. É terrível, mas divertido e engraçado. De arrepiar e de provocar gargalhadas. Nesse sentido, o livro de Juscelino Neco conta não só a história do abjeto Gonçalo, mas também um pouco da nossa: confesse, também somos monstros muitas vezes…

Como no mundo dos serial killers os detetives são quase sempre ignorados, “Matadouro de Unicórnios” cumpre a liturgia. Portanto, não espere encontrar um enredo do tipo gato-e-rato. Há um mistério a ser solucionado, sim, mas ele está muito mais ligado à cena que nos introduz na história do que à identidade de quem está por trás daquela pilha de cadáveres. Trocando em miúdos: não interessa muito saber quem matou, mas como viemos parar aqui…

Não se esqueça também que estamos tratando desses seres ao mesmo tempo magnéticos e repulsivos, os assassinos em série. De forma consciente, Juscelino Neco repete alguns clichês: a banalidade que torna ocas as motivações, a natureza egocêntrica dos matadores compulsivos, e uma ingenuidade difícil de acreditar nas vítimas.

O leitor mais atento vai se divertir com as muitas referências à cultura pop e ao universo dos gibis pré-Comics Code. Sim, aqueles que eram editados principalmente pela EC Comics nos Estados Unidos e que chegaram a trazer mulheres degoladas na capa! Mas há também um inescapável Stephen King ali, já que o protagonista é um escritor malsucedido que deixa de lado a escrita para usar instrumentos mais afiados.

A narrativa não-linear e duas ou três reviravoltas transformam a historinha convencional num produto divertido e envolvente. Com um título mortal, “Matadouro de Unicórnios” chega aos leitores com muito mais acertos que erros. Particularmente, me incomodou a falta de simetria nas margens, o que dá a impressão de desajuste entre as pranchas desenhadas e os espaços das páginas. O tamanho diminuto das letras nos balões e recordatórios também prejudica um pouco a experiência de leitura, principalmente para quatro-olhos como eu. Afora isso, a capa é forte, impactante e convidativa. Um banho de cor.

Uma advertência final: este guia ilustrado para assassinos seriais não é recomendado para o seu sobrinho de 8 anos ou para presentear no 12 de outubro. É dessas coisas que não fazem muito bem para as crianças, mas que se conhecidas ao longo da vida, nos tornam adultos melhores. Melhores homicidas, melhores profanadores de corpos, melhores esquartejadores…

 

Título: Matador de Unicórnios
Autor: Juscelino Neco
Páginas: 160
Editora: Veneta
Este livro no Skoob

SINOPSE – Gonçalo não é uma pessoa violenta, é um serial killer normal que acaba envolvido numa sangrenta espiral de brutalidade, canibalismo e violência sem sentido. Na mão de outros escritores, Matadouro de Unicórnios talvez se tornasse um livro de terror ou um violento thriller policial. Mas na mão de Juscelino Neco, o resultado é uma comédia hilariante, cheia de sangue e suspense.

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