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Leia com exclusividade um trecho de “Máscaras”, de Leonardo Padura

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Por Rogério Christofoletti – Depois do sucesso de “O Homem Que Amava os Cachorros” (2013) e Hereges (2015), a Editora Boitempo movimentou-se para adquirir os direitos para publicar a série inicial com o detetive-tenente Mario Conde, o mítico personagem de Leonardo Padura.

Três dos quatro livros já tinham saído no Brasil pela Companhia das Letras – “Passado Perfeito”, “Ventos de Quaresma” e “Máscaras”. Faltava “Paisagem de Outono”, que finalmente chega às estantes nacionais e tem na escritora Ivone Benedetti (Cabo de Guerra, Boitempo, 2016) a sua tradutora.

 

A tetralogia, batizada como Estações Havana,
desembarca de uma só vez neste mês de novembro

Os livros receberam novos tratamentos de edição e tradução, além de projeto gráfico que dá unidade ao conjunto, o que ainda não havia sido feito antes também.

São as quatro estações do mais celebrado escritor cubano da atualidade, e mostram o amadurecimento do detetive que anseia se tornar escritor, revelando uma Havana charmosa e ainda presa aos grilhões do passado. Amores, crimes, livros, bebedeiras homéricas e um senso de justiça implacável. Uma curiosidade: nos Estados Unidos, os livros da coleção não foram associados às estações do ano, mas a cores: Havana Blue, Red, Black e Gold…

 

O literaturapolicial.com antecipa agora um trecho de “Máscaras”, o terceiro volume da coleção

“O calor é uma praga maligna que tudo invade. O calor cai como um manto de seda vermelha, maleável e compacto, envolvendo os corpos, as árvores, as coisas, para injetar-lhes o veneno escuro do desespero e a morte mais lenta e segura. É um castigo sem apelações nem atenuantes, que parece disposto a devastar o universo visível, embora seu vórtice fatal deva ter caído sobre a cidade herege, sobre o bairro condenado. É o martírio dos cachorros vira-latas, doentes de sarna e desespero, que procuram um lago no deserto; desses velhos que arrastam bengalas mais cansadas que suas próprias pernas, enquanto avançam contra a canícula na luta diária pela subsistência; das árvores antes majestosas, agora vergadas pela fúria dos graus em ascensão; da poeira morta nas calçadas, saudosa de uma chuva que não chega ou de um vento indulgente, capazes de reverter com sua presença esse destino imóvel e transformá-la em lodo ou em nuvens abrasivas ou em tormentas ou em cataclismos. O calor tudo esmaga, tiraniza o mundo, corrói o que ainda é possível salvar e desperta apenas as iras, os rancores, as invejas, os ódios mais infernais, como se seu objetivo fosse provocar o fim dos tempos, da história, da humanidade e da memória… Mas como é possível fazer tanto calor, porra?, sussurrou enquanto tirava os óculos escuros para enxugar o suor que sujava seu rosto, cuspindo para a rua uma saliva grossa e escassa que rolou sobre a poeira sedenta demais.

O suor queimava seus olhos, e o tenente Mario Conde olhou para o céu, clamando pela piedade de alguma nuvem oportuna. E foi então que os gritos de júbilo ecoaram em seu cérebro. Voavam trazendo uma algaravia densa, de coro ensaiado, que se expandiu como se tivesse brotado da terra e deslizasse contra o calor da tarde, se levantasse por um instante sobre o ronco dos carros e caminhões que corriam pela Calzada e se abraçasse sorrateiramente à memória de Conde. Mas só ao chegar à esquina é que os viu: enquanto um grupo festejava, saudando-se com tapas e mais gritos, outros discutiam, também em voz alta e com cara de poucos amigos, culpando-se mutuamente pela mesma razão que os outros eram tão felizes: estes perderam e aqueles ganharam, concluiu facilmente quando parou para olhá-los. Havia rapazes de várias idades, entre doze e dezesseis anos, de todas as cores e todos os tipos, e Conde pensou que se alguém como ele, vinte anos antes, tivesse parado naquela mesma esquina do bairro ao escutar uma algaravia parecida teria visto exatamente o que ele estava vendo: rapazes de todas as cores e todos os tipos, só que aquele ali, o que mais discutia ou festejava, certamente teria sido Condesito, neto de Rufino Conde. De repente respirava a ilusão de que ali não existia o tempo, pois aquele mesmo cruzamento servira desde então para jogar beisebol, embora em certas temporadas aparecesse, infiel e traiçoeira, uma bola de futebol ou uma cesta de basquete cravada no poste de luz. Mas em pouco tempo a bola de beisebol – no bate, na mão, no quatro-esquinas, nos três rolling-un-fly ou na parede voltava a se impor, sem maiores controvérsias, sobre essas modas passageiras: o beisebol os contagiara, como uma paixão crônica, que Conde e seus amigos sofreram em virulentas proporções.

Apesar do calor, as tardes de agosto sempre tinham sido as melhores para jogar beisebol na esquina. A época de férias propiciava que todos estivessem no bairro em todas as horas, sem nada melhor a fazer, e o sol exacerbado do verão permitia jogar até depois das oito da noite, quando alguma partida realmente o merecia. Mas ultimamente Conde vira poucos jogos de beisebol na esquina. Os rapazes pareciam preferir outras diversões menos enérgicas e fedorentas do que essa de correr, bater na bola e gritar, durante horas, sob o sol carbonizante do verão, e ele ficava pensando o que fariam os rapazes de agora nas longas tardes de agosto. Eles, não: sempre jogavam beisebol, lembrou-se, e lembrou-se de que já não restavam muitos deles no bairro: enquanto uns entravam e saíam da prisão por crimes maiores e menores, outros tinham se mudado para lugares tão distintos entre si como Alamar, Hialeah, Santiago de las Vegas, Union City, Cojímar ou Estocolmo, e até havia um com um bilhete só de ida para o cemitério de Colón: pobre Marquitos. Por isso, embora quisessem e tivessem forças nas pernas e resistência nos braços para tanto, os daquela época nunca mais poderiam organizar outro time de beisebol ali na esquina: a vida devastara essa possibilidade, como tantas outras.

Quando a discussão e as comemorações terminaram, os rapazes resolveram organizar outra partida, e os dois líderes evidentes do grupo se prepararam para escolher os jogadores de cada equipe a fim de redistribuir as forças e prosseguir a guerra em condições mais equânimes. Então Conde teve uma ideia: pediria a eles para jogar. Sentia-se moído pelas oito horas de trabalho no Departamento de Informação da Central de Polícia, mas eram apenas seis da tarde e preferia não voltar já para o calor solitário de sua casa. O melhor que podia fazer era jogar beisebol. Se deixassem.

Aproximou-se do grupo, que estava em volta da tábua escolhida como home-plate, e chamou o filho do negro Felicio. Felicio era um dos que sempre jogaram com ele e, como fazia muito tempo que não o via, Conde imaginou que estaria preso de novo. O rapaz era tão negro quanto o pai e também herdara aquele cheiro de suor, abrasivo e amargo, que Conde conhecia de cor por ter a faculdade de adquiri-lo toda vez que andava com Felicio.

– Rubén – disse então ao pretinho, que o olhava desconfiado –, você acha que eu posso jogar um pouco com vocês?

O rapaz continuou a observá-lo como se não tivesse escutado e, depois, olhou para os amigos. Conde achou que se impunha uma explicação.

– Faz tempo que não jogo e me deu vontade de pegar umas bolas…

Rubén se aproximou dos outros jogadores para não ser o único a assumir o peso da decisão. Neste país é melhor consultar todo mundo, pensou Conde, enquanto esperava o veredicto. As opiniões pareciam divididas, e o consentimento demorou mais que o previsto.

– Tudo bem – disse Rubén enfim, em sua função de intermediário, mas nem ele nem os outros pareciam satisfeitos com essa concessão.

Enquanto discutiam a formação das equipes, Conde tirou a camisa e dobrou duas vezes a barra da calça. Por sorte, naquele dia não tinha levado a pistola para o trabalho. Pôs a camisa sobre o muro da casa onde vivera o galego Enrique – morto também, fazia dez, vinte, mil anos? –, e finalmente lhe disseram que ia ficar na equipe de Rubén e servir no campo. Mas, ao se ver cercado pelos rapazes, sem camisa como eles, Conde sentiu a evidência de que tudo era absurdo e forçado demais: percebia na pele o olhar dissimulado dos jovens e pensou que talvez deviam vê-lo como o primeiro missionário chegado a uma tribo remota: era um estranho, com outras palavras e outros costumes, e não seria fácil integrar-se naquela confraria que não o solicitara, nem o queria, nem podia entendê-lo. Além disso, todos os rapazes deviam saber que era um policial e, respondendo à ética ancestral do bairro, não lhes seria especialmente agradável que outros os vissem nessas intimidades com Conde, por mais amigos que tivessem sido seus pais ou irmãos mais velhos. Sim, havia certas coisas naquela esquina que não mudavam.

Enquanto os de sua equipe avançavam para cobrir suas posições, Conde apanhou a camisa e se aproximou de Rubén. Quis passar o braço em seus ombros, mas se conteve ao pressentir o contato de sua pele com a camada de suor que cobria o rapaz.

– Desculpe, Rubén, mas me lembrei de que estou esperando um telefonema. Jogamos outro dia – disse.

E se afastou para a Calzada, sentindo que o sol, vermelho, ímpio, já batendo na altura de seus olhos, queimava-lhe o corpo e a alma.

Sobre sua cabeça pôde ver a espada em chamas que lhe indicava a saída irreversível do paraíso irremediavelmente perdido que fora seu, e já não era nem voltaria a ser. Se aquela esquina não lhe pertencia, restaria algo de seu título de propriedade?

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