Por Rogério Christofoletti – Todas as pessoas têm seus autores favoritos. Alguns leitores têm também suas editoras prediletas. Mas quem costuma ter seus tradutores do coração? Pode falar! Quase ninguém, né? O que é um tremenda injustiça com esses bravos personagens que enfrentam selvas de palavras e expressões idiomáticas, sintaxes complicadas, gírias de época, trocadilhos e ambiguidades, sem contar as experimentações linguísticas.
Tradutores costumam deixar de ser invisíveis quando vertem obras consideradas até então impossíveis, ou quando uma grande quantidade do seu trabalho chega ao mercado ao mesmo tempo, gerando aquela sensação de que está traduzindo a Biblioteca de Alexandria… É mais ou menos assim com Érico Assis, prolífico tradutor de histórias em quadrinhos, romances pop e livros teóricos, com mais de 200 trabalhos assinados para editoras como Companhia das Letras, Panini, Globo, Intrínseca, Leya, Marsupial e outras.
Na área desde 2008, já respondeu pelas palavras de Chuck Palahniuk, Neil Gaiman, Alan Moore, Grant Morrison, Chris Claremont, Warren Ellis, Richard Dawkins, Henry Jenkins e grande elenco. Jornalista de formação, Érico Assis mora em Florianópolis, onde dá sequência a um doutorado em tradução e termina um livro sobre… tradução de quadrinhos! Cercado de mistério, adianta que é uma obra voltada para os fãs do gênero e com lançamento previsto para 2017. Com fala mansa, olhar paciente e um sorriso no canto da boca, Érico Assis mantém a fama dos bons tradutores: é discreto, quase invisível. A estratégia funciona. Quietinho, quietinho, trabalha como uma máquina e talvez esteja mesmo traduzindo a tal Biblioteca de Alexandria…
1. É comum vermos conversas de tradutores, compartilhando grandes soluções para trechos difíceis e também algumas derrapadas. Qual a tradução da qual você mais se orgulha? E a mais difícil?
Olha, não fico à vontade para avaliar a qualidade das minhas próprias traduções. O orgulho que tenho por elas geralmente está em torno do histórico do projeto. Tenho um carinho especial, por exemplo, por um livro chamado CONTOS DE LUGARES DISTANTES, do Shaun Tan (Cosac Naify), simplesmente porque fiquei contente de participar de um livro que nem aquele. Tenho orgulho das traduções de SUPERDEUSES, de Grant Morrison (Seoman), e de MARVEL COMICS: A HISTÓRIA SECRETA, de Sean Howe (LeYa), porque são dois projetos dos quais eu corri atrás. Também corri atrás de THE PRIVATE EYE, de Brian K. Vaughan e Marcos Martin (http://panelsyndicate.com/) direto com os autores, de SCOTT PILGRIM, do Bryan Lee O’Malley (Quadrinhos na Cia.), de FLEX MENTALLO, de Grant Morrison e Frank Quitely (Panini). As traduções mais difíceis… Eu acho que o cerne da tradução é a tomada de decisão, então as mais difíceis são aquelas em que as decisões são mais arbitrárias: quando você tem, pela natureza do projeto, se é que pode dizer assim, liberdade demais para dar conta de transmitir forma e sentido do texto de partida. Tem vários momentos assim em muitas traduções que eu fiz. Mas um projeto que foi todo assim – e, por isso, talvez o meu mais difícil – foi OS 13 TIQUE-TAQUES, de James Thurber (Poetisa). Ainda estou curioso para saber o que os leitores acharam.
2. Acaba de sair Tintim no Congo, uma tradução sua do personagem original de Hergé. A leitura permite ver uma série de aspectos que podem soar chocantes hoje, como tiradas racistas, por exemplo. Imagino que os desafios que você teve não foram apenas para verter algumas falas que parecem datadas hoje. Como foi traduzir este trabalho em particular?
Bom, começou pelo fato de ser uma tradução do francês, um idioma do qual não estou tão acostumado a traduzir (não tanto quanto traduzo do inglês). Porém, mesmo sendo um francês dos anos 1930, com uma e outra gíria particular ao francês belga da época, foi fácil de ler e verter. Em relação a encontrar o linguajar do Tintim em português, tive por referência as ótimas traduções do Eduardo Brandão para toda a série (na versão colorida – e com texto diferente) tintinesca. Em relação a entender algumas referências, tive o apoio do TINTIN: THE COMPLETE COMPANION, de Michael Farr, um guia tintinófilo. Em se tratando especificamente das caricaturas dos africanos e das visões preconceituosas, sim, fiquei preocupado e escrevi uma carta comprida à editora Globo para ter certeza que estávamos todos cientes dos 60 ou 70 anos de polêmica em torno de TINTIM NO CONGO. E também para ressaltar que as caricaturas não estavam só no desenho, mas nas falas dos congoleses: o francês deles é infantil e carregado de erros. Isso afeta diretamente o meu trabalho, pois, se eu quiser reproduzir o que entendo por intenção do Hergé, também vou ter que caracterizar os congoleses com um português infantil e carregado de erros – com um cuidado redobrado para não intensificar nem diminuir esta infantilização e esta carga de erros. Tentei manter uma precisão quase matemática nestas falas africanas, para que ninguém venha me dizer que “no original não era tão caricato”. Se eu dei conta do recado, era exatamente tão caricato quanto ficou no português. “Também sugeri que a edição poderia ter uma nota de contextualização no final, em que a editora declara-se ciente que o material pode render críticas, que não fecha com a moral atual, que foi produzido em outra época e nem o próprio Hergé gostava. Ficou uma nota curtinha no final do TINTIM NO CONGO.” Mas, sinceramente, acho ainda mais preconceituosa e gritante a caricatura dos chineses em TINTIM NA AMÉRICA. De qualquer maneira, não é minha opinião que está representada ali. E acredito que é possível ler entendendo que eram outros tempos – e sabendo que o próprio autor mudou de ideia.
3. Neste sentido, que liberdade têm os tradutores para “amenizar” certos textos originais?
Na forma como vejo meu trabalho, não vejo amenizar ou intensificar o tom de um texto como função minha. O que tento entregar à editora é o mais próximo que consegui chegar, no português, do tom que o autor utilizou na língua de partida. Se este texto vai ser amenizado, intensificado ou sofrer outro tipo de transformação em relação ao idioma de partida, essa decisão ficará a cargo da editora. Não sei se exemplifica bem o que quero dizer, mas em TINTIM NO CONGO os congoleses falam “m’sieur” ao invés de “monsieur”. Na tradução, eu queria usar “missiê”, mas achei que seria ousadia demais bagunçar a relação francês/português/francês-congolês. Utilizei “sinhô” e deixei uma nota para a editora dizendo que poderiam usar “missiê” caso achassem legal (seria um localizar/substituir na hora da revisão). Acharam. Então, por sugestão minha e decisão da editora, os congoleses falam “missiê”. Na real, toda tradução que entrego é uma sugestão. Por mais que eu seja creditado como “tradutor”, o processo de tradução ainda envolve editores, revisores, preparadores – todos vão tomar decisões sobre o texto que vai chegar ao leitor. Por mais que vez por outra eu mesmo possa atenuar ou intensificar algo no texto, acredito que esta é uma decisão política que deveria caber à editora.
Acho que meus maiores desafios foram na tradução de romances. Por se tratar de pura prosa e pela natureza da coisa, os autores de literatura explorarem os recursos de pura prosa. O idioma tende a ser mais trabalhado do que nos quadrinhos ou em livros teóricos.
4. Nas centenas de traduções que você já fez, o que dá mais trabalho: histórias em quadrinhos, romances ou livros teóricos? Que desafios cada produto traz?
O que dá trabalho não é a mídia ou o gênero em que se trabalha, mas a maneira como os autores e autoras usam o idioma no texto de partida. Ou seja, o problema maior está nos buracos na estradinha inglês-português, ou na francês-português, ou na estrada do par de línguas que for, e não no carro que você está dirigindo. Quadrinhos têm particularidades como as relações de (duplo, triplo, quádruplo) sentido que o texto pode estabelecer com os desenhos. Também nas quebras das falas, muitas vezes na necessidade de ser sintético, de reproduzir a fala oral. Livros teóricos também têm particularidades, como o encaixe lógico em toda uma rede terminológica que já existe em outros livros (livros que não foi você que traduziu), e a qual você tem que conhecer um pouco. Mas acho que meus maiores desafios foram na tradução de romances. Por se tratar de pura prosa e pela natureza da coisa, os autores de literatura explorarem os recursos de pura prosa. O idioma tende a ser mais trabalhado do que nos quadrinhos ou em livros teóricos. Aí tem trechos da estrada que ainda não foram construídos, trechos que você precisa abrir no meio do mato, ou trechos que não existem – são abismos. E aí você tem que sacar como lança uma ponte, uma cordinha que seja, para chegar do outro lado.
5. Você tem se especializado em traduzir textos de cultura pop. Esse universo tem gírias, valores e conceitos que são muito dinâmicos. Isso não torna as suas traduções mais perecíveis? Aliás, traduções têm prazo de validade?
Eu diria que a cultura pop, por natureza, é feita para ser descartável. É óbvio que algumas coisas perduram, mas isso é mais por acidente do que propósito. Ainda ouvimos Elvis, ainda lemos Tintim e Batman. Nesse sentido, quando eu traduzo alguma coisa atual relacionada a cultura pop, traduzo pensando que vai ser consumido neste momento, com as gírias, valores e conceitos deste momento. Se essas traduções perdurarem, será por acidente. Quando eu traduzo materiais de outra época – os Tintins são um caso; no momento, estou traduzindo um livro escrito nos anos 1950 -, posso tentar reproduzir o linguajar do português desta época. Mas há divergências editoriais (e acadêmicas) em relação a isso: há quem defenda que o texto, independente de sua idade, deve usar o linguajar de hoje se for traduzido hoje. Isso também pode variar conforme as intenções do projeto editorial.
6. Imagine que lhe chega um trabalho de um escritor húngaro, publicado na língua nativa, mas que encomendam de você uma tradução da versão em inglês. Que dificuldades existem quando se faz uma tradução de segunda mão?
Bom, já traduzi do inglês um romance young adult chamado CÍRCULO (Intrínseca), escrito originalmente em sueco. Foi a mesma coisa com uma HQ, SEGREDO DE FAMÍLIA (Quadrinhos na Cia.), originalmente em holandês. Do ponto de vista operacional (e acadêmico), não muda muita coisa: você tem um texto numa língua de partida e vai chegar a outro texto na língua de chegada. Os possíveis “prejuízos” que você pode ter com uma tradução como essa estão no fato de que o primeiro tradutor fez adaptações, compensações, apagamentos, acréscimos e outras operações em relação ao primeiro idioma – e você nem sempre sabe quais são. No caso de CÍRCULO, por exemplo, percebi que o tradutor sueco-inglês adaptou as fases do sistema educacional sueco para o sistema inglês. É normal dos tradutores britânicos e americanos fazerem esse tipo de adaptação domesticadora – nas traduções brasileiras, nem tanto. Neste caso, fiquei em dúvida se deveria voltar atrás (ao sistema sueco), manter a versão britanizada ou fazer uma nova adaptação, agora para o sistema educacional brasileiro. A solução ideal, claro, é traduzir-se sempre do primeiro idioma em que o livro foi escrito. Quando não é possível, a edição tem que especificar que foi traduzida a partir de um idioma outro – e dar crédito ao primeiro tradutor, claro.
7. Entre seus próximos trabalhos, está a versão em quadrinhos da Trilogia Millenium, idolatrada pelos leitores de nosso site. O que podemos esperar dela?
A versão em quadrinhos que eu traduzi é a francesa, feita por Sylvain Runberg e José Homs. (Existe uma adaptação em HQ norte-americana e acho que uma em mangá.) Eles adaptaram os três livros de Stieg Larsson, num total de 6 álbuns. Por enquanto só traduzi dois. Eu só conhecia o material dos filmes (o sueco e o americano), mas fui atrás dos livros quando estava fazendo a tradução. Apesar do encadeamento da trama ser praticamente o mesmo, os autores da HQ condensam a história e até puxam algumas coisas dos livros 2 e 3 para a adaptação do primeiro. Foi importante conhecer a trilogia completa e como algumas coisas já haviam sido traduzidas nas edições da Companhia das Letras. Gosto muito da caracterização que os autores deram ao Mikael Blomkvist e à Lisbeth Salander. Como se trata de uma HQ, a maior parte da caracterização está nas expressões, no gestual, e o desenhista é excelente nestes aspectos (e em todos os outros também – a HQ é visualmente linda). Blomkvist, a meu ver, tem o seu caráter mais impetuoso, até mesmo arrogante, melhor interpretado nessa versão em HQ do que pelo Daniel Craig ou o Michael Nyqvist.
(Imagens: Acervo pessoal, Rogério Christofoletti)
Jornalista, dramaturgo e professor universitário. Já publicou 12 livros na área acadêmica e escreveu oito peças de teatro. É um dos autores do e-book “Os Maiores Detetives do Mundo” (Chris Lauxx).
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Grande entrevista!
Mas acho que houve um equívoco no trecho "acho ainda mais preconceituosa e gritante a caricatura dos chineses em TINTIM NA AMÉRICA". Ele não estaria falando dos índios?
Obrigado, Britto! Bom, a caricatura dos índios não é das mais elogiosas. Mas acho a dos chineses (é uma cena curta no final de AMÉRICA) gritante porque é uma representação que uma pessoa com neurônios só faria por sarcasmo. E é uma cena apagada do América colorido.