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Scanoni e os 10 mandamentos de Chandler: uma interpretação de Casos Recifenses

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(Imagem: David Pakman Show)

 

Por Fernando Maia – Comecei a pensar a escrever um policial, certamente pela idealização de um protagonista, lá pela segunda metade de 2010. A escrita de “Casos Recifenses” terminou definitivamente nos primeiros meses de 2013. Embora já tivesse ouvido muito falar de Raymond Chandler, só tomei contato com ele certamente no final desse ano, por meio de uma edição com alguns contos seus – acho que apenas um realmente policial. Disso, embora não tenha lido nada depois, passei a considerá-lo o melhor dentre os americanos, justo porque era ótimo escritor.

Há coisa de dois anos conheci os mandamentos e na primeira lida, concordei muito com ele, mesmo parecendo insensato ditar regras para um gênero que hoje em dia é tão ampliado. Depois sempre tentei, nas releituras de “Casos Recifenses” e nas reflexões seguintes, interpretar Scanoni e o livro por meio dessas regras. Resolvi então escrever o exercício. Segue abaixo o resultado.

 

1 – A narrativa deve ser motivada com verossimilhança, tanto quanto à situação original como o seu desfecho;
Tudo é verossímil em “Casos Recifenses”: os homicídios, a investigação, eivada de condicionantes técnicos próprio do trabalho policial, as vítimas, os homicidas, os motivos e principalmente o próprio Scanoni, além do espaço diegético: um Recife totalmente real, com a reprodução fidedigna, por exemplo, dos locais. Talvez seja válido algum questionamento sobre o temperamento do personagem ser coisa comum a um policial brasileiro, mas nunca se pode dizer que existir um Scanoni policial no Brasil seja impossível. Já trabalhei com policiais e digo que, se nenhum era um Scanoni, alguns eram bem mais sofisticados (na personalidade) do que o que se pensa. Para fazer um contraponto, Espinosa de Garcia Roza é um policial brasileiro que analisa seus suspeitos como psicanalista, que lê literatura extremamente elevada e sonha um dia em sair da polícia para abrir um sebo. Mas talvez o seu grande problema é que ele é um personagem ontologicamente ético, às vezes descambando para o moralismo, enquanto a instituição de que faz parte é ontologicamente podre, salvando-se ele e mais uns auxiliares. Não parece fazer sentido. Espinosa tem problemas claros de verossimilhança. Acho que Scanoni, não. E antes que me chamem de despeitado, bebi muito em Garcia Roza na composição do meu personagem, principalmente na relação que Espinosa tem com a sua localidade, o Rio, Copacabana e o Peixoto.

2 – Ela deve ser tecnicamente notada como método de assassinato e de detecção do crime;
Salvo algum erro ou outro, minha preocupação em ser correto quanto a esses assuntos foi muito grande. Inclusive, quando procurei usar os termos mais técnicos como laudo tanatoscópico, papiloscopista, balística, forense, diligência, etc; além de fazer certas escolhas por palavras como projétil, em vez de bala, disparo, em vez de tiro, homicida, em vez de assassino e homicídio, em vez de assassinato, abdômen, em vez de barriga, crânio em vez de cabeça, etc. E seria importante notar também que os policiais, no discurso direto, quase sempre usam o jargão mais técnico. As pessoas normais não. Isso é caso para uma leitura atenta.

3 – Deve ser realista em temperamento, cenário e atmosfera. Deve falar sobre pessoas reais no mundo real;
Isso continua a resposta à primeira regra. As intenções realistas (verossimilhança é um termo melhor) perpassam todo o texto de “Casos Recifenses”, pelo menos até o epílogo.

4 – Deve ter uma história que tenha valor para além do mistério: ou seja, a investigação por si mesma deve ser uma aventura atraente de se ler;
Procurei inserir problemáticas da vida de qualquer pessoa em Scanoni. Acho muito irritantes as histórias policiais em que os personagens não fazem nada a não ser pensar no crime e investigar o crime, aí bebem por causa do crime, não dormem por causa do crime, brigam com a esposa por causa do crime, abandonam os filhos por causa do crime, não comem ninguém por causa do crime, etc. Tanto que Scanoni é profundamente preocupado em deixar as coisas de trabalho na Seccional e ir pra casa dormir na rede, inclusive abandonando um caso, porque vai entrar de férias. O único momento em que ele pensa em trabalho fora do expediente é quando sonha. Mas, além de sonhar com outras coisas, como por exemplo, mulheres, não se pode controlar o onirismo. E isso é bem realista. E pessoalmente gostei bastante dos resultados que alcancei na vida sentimental do personagem, fundada no contraponto entre idealismo (platônico) e realidade, coisa que pode acontecer a qualquer pessoa nos assuntos de amor.

5 – Deve ser essencialmente simples para se explicar com facilidade quando for o momento adequado;
Às vezes acho que acabei complicando algumas das histórias. Principalmente a “A cópia malfeita” que é a de que menos gosto, em que julgo exagerado no detalhismo. Na verdade, as histórias passaram a ser mais simples depois que eu elaborei uma espécie de procedimento pra escrever. Mas além do caso supracitado sempre fico me perguntando se simplifiquei suficientemente as coisas.

6 – Deve ser capaz de confundir o leitor mais esperto;
Duas coisas aí. Acho que em “Aurora Vermelha” eu dou uma escancarada logo no começo sobre o homicida. O leitor tem que se perguntar: o cara diz que entrou na casa porque entrou e Scanoni desiste dele? A minha justificativa é que o leitor deve entender que Scanoni é metódico no trabalho. Se o suspeito fez uma coisa estranha, mas não há nada que se encaixe no resto da investigação – lembremos que essa investigação estava no início – ele não tem por que insistir nesse suspeito. O nome disso é contraditório, até onde eu entendo de direito penal. E para Scanoni, imagino que tenha falhado em deixar isso claro, ninguém é suspeito a não ser que apareça algum elemento que razoavelmente indique o contrário. A outra coisa é que a estratégia clássica dos escritores policiais é pôr na história um personagem que parece o criminoso. Eu nunca gostei muito disso porque parece embuste, com raras exceções. O que eu fiz, algumas vezes, foi fazer Scanoni cometer erros procedimentais e de raciocínio no trabalho. Acho mais crível. E além de tudo fiz alguns deboches, como em “Raticidas Populares” quando Scanoni tem uma sensação estranha por causa do formol. No mais pode ser que eu tenha errado a mão alguma vez quando tentei confundir o leitor. Procurarei lidar melhor com isso no próximo livro.

7 – A solução deve parecer inevitável quando for revelada;
Não entendo bem o que significa essa regra. Acho que diz mais respeito ao noir americano e os hard boilled, quando matar o criminoso muitas vezes é a única saída pro investigador. Acho que não se aplicaria a nosso amigo.

8 – Não se deve tentar fazer tudo ao mesmo tempo. Se é uma história quebra-cabeça, operada em um ambiente razoavelmente bom, não pode ser também uma aventura violenta ou um romance apaixonado;
Isso diz respeito ao tom (à tinta, como diria Machado de Assis). Ou se usa o cérebro, ou se usam os músculos, ou se usa o coração. Dá até pra pitar um pouco de um, quando o tom é o outro, mas a dose tem que ser pequena. Acho que fiz isso, escolhendo o cérebro, colocando algo de coração, ainda que nunca se dramatize isso. Violência, só a dos próprios homicídios, que por sua vez, nunca são nada impressionantes ou elaborados. Sobre a escolha pelo cérebro, o quebra-cabeças nunca é tão complicado assim. É por meio do trabalho investigativo e não pelo poder de dedução, esse virou poder de escamoteio nas história das narrativas policiais, que Scanoni resolve (ou não) os seus casos. Como costumo dizer, ele não é mais inteligente que o normal da humanidade, ele é apenas competente quando desempenha seu trabalho como policial. Aí, de fato, sugere-se que ele está acima da média.

9 – A história deve punir o criminoso de um jeito ou de outro, não necessariamente por força da lei. Se o detetive falha em resolver as consequências do crime, a história é um acorde sem solução, o que deixa irritação por trás dele;
Desobedeci muito isso. É notável que, no final de tudo, Scanoni não prende ninguém e muito menos mata alguém. A função dele, e ele sabe disso, não é essa de punir o criminoso de um jeito ou de outro. A função dele é fechar o inquérito devidamente, com o esclarecimento do fato, ou no mínimo fazer o que pode ser feito dentro de horário de expediente. É de fato um papel no processo de punição ao criminoso, mas conscientemente limitado. Essa característica do meu personagem foi claramente uma interpretação do investigador Dave Toschi, apresentado a nós como personagem no filme Zodíaco, de David Fincher. Num contraponto a outro personagem, o arquétipo do detetive consultor, as demandas de Toschi eram sempre no sentido de que ele não poderia ir além do processo a que ele estava subordinado, por mais que às vezes pudesse ficar frustrado por isso. A única vez em que Scanoni parece um pouco mais frustrado com esses limites, é quando, em Obituário de Carnaval, ele quer de fato prender uma pessoa. Mas o leitor atento deve notar que mais do que fazer justiça, ele quer compensar o fato de que não haverá carnaval para ele. Daí o estardalhaço da operação que prenderia o criminoso. A intenção aí, antes de ser irritar os leitores, foi causar efeitos mais realistas, até porque a minha avaliação sobre essa necessidade ética da literatura policial – a de se fazer justiça, não importando eventuais custos elevados – é a de que ela é um moralismo piegas pouco aplicável ao nosso tempo. E ao meu favor, posso dizer que nenhuma das pessoas que leu o livro alegou irritação por isso.

10 – Você deve ser honesto com o leitor.
Essa regra provavelmente é um ataque à história policial de contrafação, na qual aparece tanta coisa inexplicável, que a única saída pro escritor, além de jogar o próprio livro no lixo, é fazer um final mirabolante, tal qual novela da Globo e coroar todo o embuste. Porque diferentemente de confundir o leitor, que deve ter as mesmas chances de desvendar o mistério que o protagonista, há muito esforço em enganá-lo. A coisa chega ao paroxismo na recente série Sherlock da BBC. Se na introdução de “Um Estudo em Vermelho”, livro de Doyle, os resultados das deduções de Holmes sobre Watson, são apresentados anaforicamente pelo próprio Watson, na série de TV, tais deduções, são algo a que não se pode chegar, seja quem for o espectador. Quem assistir ao primeiro capítulo, vai ver que uma das características do médico e parceiro de apartamento que Sherlock Holmes aponta foi percebida e deduzida, depois que Sherlock viu o desgaste da entrada do plug do carregador de celular. Não havia possibilidade alguma de se tirar tais conclusões sobre Watson. Tanto é que, na explicação do processo, a câmera precisa se aproximar muito do telefone, numa tentativa tosca e histérica de convencer o espectador de que a pista esteve sempre ali aos seus olhos e ele é que foi descuidado. A intenção de enganar o espectador é flagrante e parece que há quem goste disso, dado que esse é o tom mais claro da série. Acontecem coisas parecidas com o Sherlock Holmes de Guy Ritchie. E como sugeri antes, a culpa disso não parece ser de Conan Doyle, mas na literatura, a grande mestra do policial de contrafação é Agatha Christie. Nunca li nada dela, mas já vi muita gente dizer que uma releitura de qualquer peça sua é capaz de ver o quanto ela é embusteira. Enfim, fica a avaliação pra quem a lê. De qualquer forma, tive intenções de obedecer essa regra em “Casos Recifenses”, mas admito poder ter havido uma falha ou outra nas concatenações. O saldo porém, parece positivo, na medida em que os que vieram me falar do livro, não reclamaram de desonestidade da minha parte.

 

Fernando Maia é escritor. Publicou em 2014 o livro de contos Casos Recifenses, no qual apresenta o Investigador Scanoni. Nasceu e vive no Recife e é pai de Maria Flor e de João.

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