Por Rogério Christofoletti – A afirmação está desgastada, mas ainda encontramos sentido nela: numa terra arrasada, qualquer tipo de planta pode crescer. Principalmente as oportunistas ervas daninhas. É num cenário como este que Antonio D. Cattani insere seu mais recente livro, O Um – inquérito parcial sobre o caso Ingo Ludder (Bestiário, 2017), novela criminal que dialoga muito com o contexto atual.
Na história, um líder carismático aproveita a descrença política, o ceticismo nos partidos e a frouxidão moral de parte da sociedade para se projetar como salvador da pátria. Ingo Ludder é magnético e arrebatador, e está cercado de estetas deslumbrados, financiadores espúrios e consultores abjetos. Alicerçado por um conjunto de vídeos enaltecedores, Ludder destila ódio, xenofobia, racismo e discriminação social, despontando como o avesso da política que está aí, estratégia que o catapulta para ser favorito a uma vaga no Senado Federal. Tudo corre bem para o homem que é apontado como O Um da organização Ordem e Verticalidade, mas, de repente, às vésperas da eleição, Ludder desaparece.
Em O Um, Antonio D. Cattani instiga o leitor a percorrer um conjunto esparso de depoimentos da investigação sobre esse sumiço para que reconstitua a narrativa original. Por isso, desfilam pelas páginas as versões parciais de personagens colaterais que testemunharam a ascensão daquela figura hipnotizante. Ganham fala a continuísta desimportante da produtora de vídeos, a pesquisadora oblíqua, a enfermeira oscilante… Com controle quase absoluto, o autor vai despejando pistas nas falas desses depoentes, aumentando a ansiedade do leitor que deseja enxergar a figura completa do quebra-cabeças. Como disse anteriormente, o controle do autor é quase absoluto, já que Cattani desliza em diversos momentos na prosódia de seus personagens, seja porque as falas ficam pouco críveis pelo formalismo das palavras, seja porque os discursos (que deveriam ser claramente distintos) não se impõem como unidades individuais. Quer dizer: a estratégia de tornar os documentos da investigação peças soltas e aparentemente difíceis de encaixar não funciona tão bem quanto se desejaria. Mais de uma vez, o autor tenta explicar algum artificialismo, atribuindo a uma escrivã interferências para uniformizar as falas, mas esse recurso soa mais como desculpa do que como um elemento deliberado.
Apesar disso, O Um é uma novela que merece atenção.
Nas páginas de Cattani, uma produtora de vídeos contribui para que o fenômeno desponte e, literalmente, o Brasil assiste e dá suporte ao surgimento de uma ameaça. Brasil, neste caso, é o videasta Jorge Brasil, joguinho de palavras que não é involuntário. O autor se diverte salpicando personagens na trama, cujos nomes são aliterações sobre nomes verdadeiros. O leitor atento também poderá se divertir ao reconhecer figuras da política nacional desfilando mal-disfarçadas naquelas linhas…
No seu terço final, entra em cena o delegado Linder que não apenas atua para aglutinar as peças do jogo, mas dá humanidade e tensão narrativa à história. Não se trata de mais um herói típico de histórias criminais, mas de uma esperança legítima que o leitor acalenta por dezenas de páginas. A partir disso, O Um se impõe como uma narrativa que não se contenta apenas a reconstituir um crime, mas a destilar críticas à sociedade e àqueles que lhe dão seus contornos. É o que faz a melhor literatura policial: não se embevece com o sangue das vítimas, mas lança um olhar impiedoso para a cena que nos aterroriza.
O Um dialoga com o nazismo e com sua paródia tupiniquim, o integralismo. Mas também faz referências aos tempos de intolerância e ódio que estamos vivendo nos últimos anos. Não chega a revelar um país diferente, inusitado ou original. Pelo contrário, convida o leitor a reconhecer seu tempo presente, seu país, nossas omissões e escolhas mal feitas. É um momento sombrio e nefasto, terrivelmente familiar. Na telegráfica dedicatória no exemplar enviado, Cattani pergunta: E depois? Eu gostaria de saber responder, e de saber a que desdobramentos aquele inquérito parcial vai levar…
Autor: Antonio D. Cattani
Editora: Bestiário
Páginas: 101 páginas
SINOPSE – O surgimento de personagens tais como Hitler, Trump ou Ludder depende da existência de indivíduos excepcionais ou de condições previamente encontradas na sociedade? Para alguns, a junção de carisma e competência política explicaria como despontam homens-acontecimento, líderes ou gênios maléficos capazes de arregimentar pessoas ordinárias e incautas. Para outros, a explicação se encontra no caráter moral de parte da sociedade. Para atingir seus objetivos, ela produz de maneira consciente e deliberada o homem-instrumento. Essa controvérsia teórica se materializa numa situação verídica: a trama da ascensão e queda d’O UM reconstruída pelo Delegado A. A. Passos Linder. Além de lidar com caso tão complexo, Linder é confrontado a um desafio: como redigir o inquérito de forma isenta sem interferir na realidade?
Jornalista, dramaturgo e professor universitário. Já publicou 12 livros na área acadêmica e escreveu oito peças de teatro. É um dos autores do e-book “Os Maiores Detetives do Mundo” (Chris Lauxx).
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