Por Rogério Christofoletti – Quem ficou arrebatado com “Garota Exemplar”, não deve esperar por menos de “Objetos Cortantes”. O primeiro foi parar no cinema em 2014 pelas mãos de David Fincher, o diretor de “Seven” e “Clube da Luta”, só pra citar os mais incisivos. O segundo chegou há pouco à TV e está arrancando elogios como quem extrai um pré-molar sem anestesia. Por trás das duas histórias está Gillian Flynn, que não só escreveu os thrillers em 2012 e 2006, mas também assinou o roteiro cinematográfico do primeiro e produziu e ajudou a criar o segundo.
Flynn é dessas autoras que socam a boca do estômago enquanto acariciam o nosso rosto. As mulheres de seus livros são complexas, multidimensionais, perturbadoras. As relações entre os personagens são encharcadas de ambiguidade e perversidade, e sempre sobra um generoso espaço para aquelas verdades que magoam. Suas histórias desnorteiam, os crimes são cruéis e nos deixam em pedaços. Ao final, percebemos que fomos arrastados para lugares que não frequentaríamos se tivéssemos escolha. Por isso, selecionamos dez razões para você conferir “Objetos Cortantes”, a minissérie da HBO que não vai te deixar dormir depois de acabar.
A jornalista Camille Preaker volta a sua cidade natal para reportar uma série de assassinatos de garotas adolescentes. Ela bebe demais, tem tendências suicidas e é constantemente assombrada pelo passado e pela mãe manipuladora. Camille é instável emocionalmente e se flagela, cortando a própria pele com objetos afiados. Seu corpo é um inventário de pensamentos doentios, frustrações e pedidos de socorro. Ao mesmo tempo, Camille Preaker é determinada e corajosa. Sim, sofremos com ela, mas também torcemos por ela.
Se não conseguimos desgrudar da protagonista vivida por Amy Adams, outros atores também oferecem atuações marcantes. Patricia Clarkson encarna a mãe cheia de mistérios, e Eliza Scanlen, a atrevida meia-irmã. Chris Messina é o detetive bonitão-forasteiro em disputa com o antiquado chefe da polícia local, interpretado por Matt Craven. Henry Czerny desenha um padrasto intrigante, e Elizabeth Perkins, uma ricaça venenosa. Para completar, Sophia Lillis – que você deve reconhecer por seu papel em IT – está muito bem escalada na pele da protagonista em sua adolescência.
Não se engane com a boa estampa, pois nessa história todos mantêm esqueletos no armário. Pouca gente se salva e eu não vou contar quem. Apenas saiba que Wind Gap, a cidadezinha onde os crimes acontecem, parece bonitinha e organizada, mas no fundo, não passa de um ninho de cobras. Seus habitantes têm vidas tediosas e miseráveis, e até os porcos que engordam para serem abatidos, são mais felizes. Vale a máxima: Pequenas cidades guardam grandes segredos.
Desaparecimentos e mortes violentas de meninas recém-chegadas à puberdade não são nada agradáveis. A jornada não é só para descobrir o assassino em série, mas também discernir o que são memórias tristes, revelações aterradoras, alucinações alcoólicas e fantasmas de verdade.
Além das cenas que nos desnorteiam sobre se realmente aconteceram, somos chacoalhados com a alternância de tempos sem qualquer aviso. O diretor Jean-Marc Vallée, de “Clube de Compras Dallas”, esbarra de propósito nas balizas que costumam nos deixar acomodados numa trama quadradinha. O resultado é uma experiência sombria e tão angustiante quanto a vida de Camille Preaker. Ter aquela vertigem de não estar entendendo muita coisa é um sintomia natural por aqui. Cortes secos e ritmo oscilante são recursos adicionais que afastam “Objetos Cortantes” do entretenimento didático tão comum no cinema americano.
A minissérie tem oito episódios de mais ou menos uma hora cada, mas a intensidade da trama pode te fazer desistir de maratonar. Não tenha pressa. Cada capítulo merece ser degustado com a calma dos mais pérfidos assassinos.
Camille Preaker não persegue apenas o assassino das garotas da sua cidade. Ela está atrás de si mesma também e dos espectros que atormentam a mulher que se tornou após uma adolescência de abusos e abandonos. Seus momentos mais calmos parecem ser quando ela dirige o velho carro pelas desoladas ruas de Wind Gap sob os berros de Robert Plant e seu Led Zepellin. São como facadas no ouvido!
Um cacoete de quem costuma devorar séries é pular a abertura dos episódios, afinal, eles funcionam como intervalos indesejáveis no fio narrativo. Os realizadores de “Objetos Cortantes” lançaram mão de um recurso interessante: a abertura é sempre a mesma, mas a trilha sonora que a acompanha se modifica a cada capítulo. Isso não serve apenas para mostrar novas musiquinhas. Na verdade, isso nos faz assistir a abertura de novo e de novo, e dá a oportunidade de buscarmos pistas nas cenas caoticamente costuradas.
“Objetos Cortantes” não é passatempo nem matinê. É um enredo sombrio, com uma carga dramática quase insuportável em alguns momentos. Cenas banais funcionam como gatilhos emocionais para a protagonista, e isso também pode acontecer com espectadores mais sensíveis. A série fala de tragédias familiares, de profanação de corpos, estupro e relacionamentos abusivos. Trata também de deterioração mental, culpa, punição, sexismo, manipulação e chantagem emocional. Acompanhar Camille é descer alguns círculos do inferno de Dante…
O bom encadeamento dos oito capítulos permite que as peças se encaixem pra valer no último episódio. Como um bom thriller, detalhes muito importantes são revelados nos instantes finais. Então, assim que as verdades começarem a surgir e seu queixo cair, apanhe-o de volta e fique com os olhos grudados na tela: em meio aos créditos, algumas cenas ajudarão a completar o horror da descoberta.
Jornalista, dramaturgo e professor universitário. Já publicou 12 livros na área acadêmica e escreveu oito peças de teatro. É um dos autores do e-book “Os Maiores Detetives do Mundo” (Chris Lauxx).
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