POR RAUL SOUSA – A literatura policial é um fenômeno mundial e que atrai milhões de pessoas em todo o planeta. Inúmeros leitores e autores gostam de se debruçar sobre livros do gênero, mesmo os que apreciam a chamada “alta literatura”.
Ora, o primeiro experimento de literatura policial no Brasil foi organizado por escritores da Academia Brasileira de Letras. Érico Verissimo, Rachel de Queiroz e Clarice Lispector são apenas alguns dos escritores que realizaram traduções de livros policiais ao longo dos anos. O Japão absorveu muito bem a literatura policial mesmo antes do início do século XX, criando uma tradição bem robusta no gênero.
Existem três grandes movimentos de literatura policial no país: a escola ortodoxa, a escola social e a nova escola ortodoxa. O movimento social ganhou força durante os anos 50 e manteve-se com boas raízes até meados dos anos 80. Seicho Matsumoto foi o grande nome desse período, buscando trazer reflexões sobre a sociedade japonesa pós-guerra.
Soji Shimada afirma que Matsumoto não tinha intenção de criar truques elaborados por acreditar que o ponto mais importante de uma história policial deveria ser o que motivava o assassino a agir daquela forma. A hegemonia desse movimento acaba nos anos 80 quando Soji Shimada publica The Tokyo Zodiac Murders e Murder in the Crooked House, criando um rebuliço entre os amantes de literatura policial. Os grupos de estudos nas universidades começaram a revelar novos autores que se identificavam muito mais com as histórias de Soji Shimada que com as histórias do movimento social: nascia a nova escola ortodoxa.
Esse novo movimento enfatizava o raciocínio lógico, levando os casos, muitas vezes, além da realidade. Muitos acadêmicos tendem a afirmar que ler uma história acaba gerando um pacto entre o leitor e o escritor. O “Shin Honkaku”, terceiro movimento da literatura policial japonesa, enfatiza isso o tempo todo. As histórias são construídas visando a participação do leitor, tirando-o da posição de mero observador. Ele lê, mas é levado a raciocinar, a criar teorias e a chegar em conclusões.
Por isso é normal que o leitor se depare com mapas, listas de personagens e descrições bem específicas de cenários. Tudo é construído para apresentar ao leitor o máximo de pistas e não para criar confusões sem sentido. Essa influência vem, com certeza, de S. S. Van Dine e Ellery Queen. O próprio Soji Shimada reconhece a influência de Van Dine nesse movimento.
Yukito Ayatsuji recebeu ajuda do próprio Soji Shimada quando decidiu publicar seu romance The Decagon House Murders. O livro foi reformulado e em 1987 foi oficialmente lançado no Japão. Talvez alguns conheçam o nome do autor, pois ele ficou conhecido pela obra Another, que foi adaptada para mangá e anime. É importante lembrar, mais uma vez, que Yukito Ayatsuji e vários outros autores foram influenciados por escritores ocidentais de mistério, principalmente os autores da Era de Ouro da literatura policial.
O livro divide sua ação na ilha Tsunojima e em terra firme. Sete estudantes universitários, membros de um clube de mistérios, vão para Tsunojima aproveitar uns dias numa casa com formato de um decágono. Os membros são tratados por nomes de escritores de literatura policial: Leroux, Carr, Agatha, Ellery, Van, Orczy e Poe. Os nomes reais dos personagens são apresentados apenas no final do livro.
A ilha, per se, já trazia um grande mistério: alguns meses antes a casa principal da ilha havia sido completamente queimada, mas os quatro corpos recolhidos lá haviam sido assassinados antes de tudo ser incendiado e uma das vítimas, uma das donas da mansão, havia sido encontrada sem uma das mãos. A única casa que havia restado era a casa decagonal.
Enquanto esses estudantes aproveitam sua estadia na ilha um ex-membro desse clube, Kawaminami, recebe uma carta em sua casa dizendo “Minha filha Chiori foi assassinada por todos vocês”. O remetente da carta era Seiji Nakamura, pai da moça citada. Ela tinha sido parte desse clube de mistérios, mas que acabou morrendo acidentalmente durante uma festa com membros desse grupo um ano antes da história se desenrolar. Lembram da mansão da ilha que havia sido queimada? Adivinhem quem era o dono da propriedade… Isso mesmo: Nakamura Seiji.
O leitor, nesse ponto, vai recebendo informações, mas nada parece fazer sentido ainda. Kawaminami decide investigar a carta e acaba conhecendo o irmão de Nakamura Seiji, Kojiro. Os dois discutem brevemente a questão na presença de um sujeito chamado Kiyoshi Shimada. Kawaminami e Shimada acabam realizando investigações por fora e entram em contato com outro membro do clube de mistério, Morisu Kyoichi. Os três tentam investigar o caso.
As histórias vão se conectando enquanto os crimes na ilha começam a acontecer. Os membros do clube vão sendo assassinados um por um, enquanto Kawaminami, Shimada e Morisu procuram investigar as coisas em terra. Quem conhece algumas técnicas da literatura policial podem jurar de pés juntos que já possuem uma solução, mas é muito difícil não ficar surpreso com a explicação de como tudo acontece. Yukito Ayatsuji foi muito inteligente em colocar metade de um capítulo inteiro apenas para explicar o que aconteceu naquela ilha. Todas as pistas são fornecidas ao leitor desde o primeiro momento. Os mapas são de grande ajuda e frequentemente o leitor acaba retornando aos esboços feitos para poder tentar raciocinar sobre o que aconteceu na ilha.
Minha experiência do livro foi interessante. Não é um caso complexo como “Murder in the Crooked House”, mas é muito interessante ver como o autor te engana aos pouquinhos. Eu errei e acertei, ao mesmo tempo, o criminoso do livro. Se alguém me perguntar se vale a pena ler o livro irei responder afirmativamente. A introdução escrita por Soji Shimada é impecável para explicar a literatura policial no Japão e a história é bastante interessante. Infelizmente ainda não há uma versão em português do livro, mas uma nova edição está sendo preparada pela Pushkin, a mesma editora que traduziu livros de Masako Togawa, Soji Shimada e Seishi Yokomizo.
Resolver um mistério intrincado, mas ainda assim justo, criado por um escritor é como receber um troféu invisível para o leitor de mistérios. A sensação de triunfo do leitor é uma experiência única. Os autores japoneses contemporâneos parecem ter percebido essa necessidade do leitor de se sentir importante e passaram a investir em histórias do gênero focando muito na racionalidade e em casos complexos. É possível ver esse movimento em filmes, séries, animes e até mesmo livros. O importante é que, no fim, a pergunta derradeira seja feita: Qui Fecit?
Estudante de economia, pesquisador e colecionador de obras policiais. Nas horas vagas, joga jogos de detetive ou escreve.
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