Por Rogério Christofoletti – Quem iria imaginar que a adolescente rica encomendaria a chacina dos próprios pais? Quem poderia supor que a tímida dona-de-casa esquartejaria o marido? Não precisamos de nomes para identificar esses recentes crimes nacionais, e eles pouco representam diante do nosso assombro: como pessoas aparentemente tão comuns podem cometer atrocidades como essas?!
As explicações podem ser muitas, e o mais importante é enxergar nessas ocorrências um recado claro de que qualquer pessoa pode atravessar a linha que divide o bem do mal, a sanidade da ruína. Sim, pessoas “normais” também matam, e a rigor ninguém está acima de qualquer suspeita. Na vida ou na ficção.
Um lugar perigoso (Companhia das Letras, 2014) reforça isso à medida que coloca um pacato cidadão como provável assassino. Mas o professor Vicente Fernandes, cinquentão aposentado por invalidez, seria incapaz de fazer algo tão brutal! Será? É possível, afinal, nem mesmo o personagem sabe dizer se isso realmente aconteceu. Vítima de uma doença que afeta sua memória, o professor se esquece de fatos recentes e antigos, provocando um isolamento que é simplesmente dilacerador.
“Quando essa perda é muito grande, a pessoa corre o risco de perder a própria identidade”, explica. Para compensar as lacunas das recordações, imagina ocorrências tentando de alguma forma recuperar o que foi perdido. Com isso, borra as fronteiras entre o que aconteceu e o que foi inventado pela própria mente.
Vicente encontra uma lista com nomes de mulheres que desconhece. Fica intrigado com uma em particular – Fabiana – e, a partir disso, passa a ser atormentado por imagens de uma mulher nua, desmembrada como um manequim de loja. Seu rosto não lhe aparece, e ele não tem qualquer pista da tal Fabiana. Convence-se de que as imagens são lembranças pessoais de um crime que teria cometido. Angustiado pelas brumas de seus muitos esquecimentos, procura o delegado Espinosa para se entregar. Mas sem corpo, sem vítima, não há crime. Temos um caso policial, afinal? Podemos confiar no julgamento do professor Vicente? É esta atmosfera nebulosa que conduz os leitores da primeira à última página, mantendo tensão e curiosidade infinitas.
Em seu 11º romance, o décimo com o titular da 12ª DP de Copacabana, Garcia-Roza oferece uma ficção madura e refinada. A maturidade se percebe pela calma com que nos apresenta os fatos e as versões de uma trama que poderia fracassar miseravelmente com um escritor neófito, apressado. O refinamento está na economia narrativa. Com pouquíssimos personagens, um punhado de cenários e sem apelar a reviravoltas rocambolescas, Garcia-Roza faz muito com tão pouco. Mergulha no jogo de luz-e-sombra das memórias avariadas de Vicente, radicaliza na fabulação e deliberadamente mescla invenção e lembrança. O tema da alucinação, da miragem, da visibilidade de algo narrado por outrem já foi explorado pelo autor em Fantasma, mas desta vez, emerge com a força de um berro, de um choro convulsivo.
Para quem acompanha as aventuras de Espinosa, isso não chega a ser uma novidade. Volta e meia, o delegado recorre à própria imaginação para remontar partes da narrativa de um crime. Foi assim em Céu de Origamis ou Espinosa sem Saída, por exemplo. Recontar é uma forma de refazer as coisas, de realizá-las de novo. Agora, com Um lugar perigoso, opera-se um deslocamento, e é o professor Vicente quem faz esse preenchimento voluntário. Sim, é vertiginoso, é angustiante. Afinal, esquecer é uma maneira de desaparecer, de se dissolver no nada. Em “Um Lugar Perigoso”, as regiões de sombra são mais espessas. Não somos seduzidos por corpos sangrantes, mas por cenas da mente de quem não podemos confiar, seja por sua instabilidade mental ou pela suspeita que alimentamos sobre seu caráter.
Misterioso, o professor Vicente é também magnético. Não é à toa que domina a cena por completo, e o herói policial se acomode numa condição coadjuvante. De uma certa maneira, isso já aconteceu antes: em Na Multidão, um conhecido da infância se sobrepõe ao delegado, que mergulha em suas memórias de infância.
O livro é habitado por personagens muito solitários, desses que fantasiam tanto, que realizam tanto em suas mentes que – de repente – não conseguem distinguir o que aconteceu de verdade e o que fizeram acontecer em suas imaginações. São seres que não se relacionam com os demais porque o mundo lhes parece muito perigoso. E ele é, coalhado de gente comum que pode fazer as piores coisas, com consciência ou não, alucinando ou falseando. As ruas desertas reservam ciladas, mas as esquinas da memória com o esquecimento aprontam também. Faça como o professor Vicente: anote para não esquecer. O mundo das ideias e das hipóteses é tão ou mais perigoso que o dos fatos.
* Exemplar enviado pela Companhia das Letras
SOBRE O LIVRO
Título: Um Lugar Perigoso
Autor: Luiz Alfredo Garcia-Roza
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 264
Ano: 2014
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SINOPSE – São muitos os lugares perigosos deste livro. O primeiro é o próprio Rio de Janeiro, onde a história se desenrola. Como de costume nos romances de Garcia-Roza, a cidade é protagonista e sua geografia se torna parte indissociável da trama. Outro lugar de perigos insondáveis é a memória do professor Vicente, figura central neste enredo. Afastado da universidade em razão de problemas de saúde, ele passa os dias em casa e ganha a vida como tradutor, numa rotina aparentemente tranquila. Até que se depara com uma lista cheia de nomes de mulheres. Quem são elas? Foram suas colegas na universidade? Alunas? Por que ele as reuniu numa lista e que relação manteve com elas? São questões que ele não tem como desvendar, pois sofre de uma síndrome em que as lembranças se apagam e a imaginação toma o lugar dos fatos. Vicente busca a ajuda do delegado Espinosa para descobrir o paradeiro das mulheres listadas. Mas a investigação traz à tona os cantos obscuros de sua mente e pode revelar a origem de crimes que nada têm de imaginários. Na décima primeira aventura do delegado Espinosa, Garcia-Roza mostra por que é um dos renovadores do gênero policial no Brasil e um de seus artífices mais talentosos.
Jornalista, dramaturgo e professor universitário. Já publicou 12 livros na área acadêmica e escreveu oito peças de teatro. É um dos autores do e-book “Os Maiores Detetives do Mundo” (Chris Lauxx).