Por Rogério Christofoletti – É estimulante quando vemos autores não habituados a escrever ficção policial desafiarem o gênero. Na verdade, eles desafiam os próprios limites, na medida em que se aventuram em terreno tão movediço. É empolgante quando esses autores fazem parte do panteão dos grandes escribas, e mais ainda quando eles já romperam a barreira dos 90 anos. Afinal, quem chega a essa idade não tem nada a provar a ninguém faz décadas, e que dirá desbravar novos mares…
Por esse punhado de razões fiquei contentíssimo com o lançamento de “Nós” (editora UFSC, 2015), de Salim Miguel. Aos 91 anos, reconhecido pela crítica mas não devidamente pelo grande público, ele coloca nas prateleiras a sua primeira incursão nas histórias de crime e mistério. E o que leitor colhe é um resultado intrigante, bem ao sabor do gênero…
Mas por que raios Salim foi se meter com detetives?, me perguntei com aquele pequeno volume alaranjado nas mãos. Por que lá foi ele matar personagens e quase nos matar de curiosidade? Ora, as respostas não estão nas pouco mais de 80 páginas que o livro reúne, mas na própria trajetória desse inquieto artista. Atrás do bigode espesso e da restante cabeleira revolta, sob os pés que sustentam a grandalhona figura, reside não só o maior escritor em atividade de Santa Catarina, mas também um dos alicerces da sua cultura.
Salim Miguel e sua mulher, a artista plástica Eglê Malheiros, escreveram livros, editaram revistas, criaram para o cinema, montaram exposições, enfim, fertilizaram o ambiente cultural local em meados do século 20, fazendo orbitar em torno daquela efervescência os principais nomes que modernizariam as artes no estado. Em outras palavras: Salim nunca se acomodou. Pelo contrário: arriscou-se, explorou fronteiras, abriu caminhos. Com seu sorriso maroto e os olhos faiscantes, poderia completar: Então, por que agora, aos 91 anos, eu ia me intimidar com um caminho literário?
“Nós” torna tolas as minhas perguntas iniciais. Seguindo a boa tradição, Salim nos oferece uma novela policial: simples e rápida, nebulosa e vertiginosa. Mas não se engane. Não se trata de um pulp qualquer porque o autor não desmerece o arsenal acumulado ao longo da vida, composto pelo esmero textual e pela delicadeza musical das suas descrições. Seus personagens são oblíquos, nada confiáveis, como bem se quer nesse tipo de história. Nem nomes, eles têm. São pronomes, o que nos faz acreditar que poderiam caber em qualquer um, como os ternos de tamanho universal que se encontrava antigamente nos estúdios de fotografia.
Mestre das palavras e de suas armadilhas, Salim Miguel recorre à ambiguidade do termo “nós” para designar os embaraços de que são constituídos os casos policiais (que precisam ser desatados) e a primeira pessoa do plural, que junta inadiavelmente os personagens, o autor e até o leitor. Sagaz, esse Salim!
Na trama – que adia o crime fazendo crescer a nossa angústia -, a passagem do tempo e suas transições se esvanecem, como se minutos e anos escorressem de uma linha para outra. Perdemos a noção das horas e só nos damos conta de que algo mudou quando chegamos ao ponto final. Não foi muito, afinal, a novela se lê numa sentada. Resta a necessidade de mais algumas páginas, quem sabe para nos dar certos detalhes de pontos obscuros que persistiram.
Honrando a tradição, Salim nos oferece um jogo e uma trapaça. O jogo mental nos conduz pelos capítulos, e vamos seguindo os personagens que desfilam errantes, vestidos de pronomes. Esprememos os miolos na tentativa de responder os porquês, os comos e os quems. Farejamos as pistas – e elas não são muitas, preciso denunciar! – e colecionamos os indícios que nos ajudariam a completar a narrativa.
A trapaça, bem, a trapaça de Salim Miguel está no aparecimento de um insólito personagem que vem a nosso auxílio. Com ele, poderíamos nos sentir mais seguros para resolver o caso, deve ter pensado o autor. Talvez. Com ele, o comissário Fleury reedita uma dupla de detetives extraordinária. Bem ao estilo de Edgar Allan Poe! Duplas de investigadores são um elemento recorrente no gênero, e a seminal Holmes-Watson é só a mais lembrada. Mas atenção! A dupla de “Nós” não deixa ao leitor qualquer direito à ingenuidade: mesmo nas páginas da literatura policial, juntar todas as peças do quebra-cabeças pode frustrar até os maiores detetives do mundo.
Título: Nós
Autor: Salim Miguel
Páginas: 83
Editora: UFSC
Ano: 2015
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SINOPSE: Na mata virgem o casebre me acolhe. Noite e dia se fundem, eu me confundo. É o breu, escuridão perene. Exagero? Sei não! Sei sim: exagero. Uma difusa luminosidade se infiltra por janelas e frinchas. Dura pouco. Aperto um botão, a luz elétrica agride o ambiente. A selva selvagem me fascina. A selva selvagem me intimida. Pingos de sol custam a aparecer. Estrela e lua inexistem.
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Jornalista, dramaturgo e professor universitário. Já publicou 12 livros na área acadêmica e escreveu oito peças de teatro. É um dos autores do e-book “Os Maiores Detetives do Mundo” (Chris Lauxx).
obrigado por postar, site excelente vou voltar mais vezes