(Tradução: Rogério Christofoletti)
O romance policial bate recordes de vendas e se torna o queridinho dos editores no Uruguai. Novas coleções e autores nacionais e estrangeiros revitalizaram o gênero e revivem o fenômeno. O assassino é o mordomo. Com esta frase simples mas poderosa, uma parte importante da opinião pública uruguaia criticou durante décadas um gênero que desde o início teve em sua linha escritores de grande talento. Tal setor preconceituoso da sociedade omitia o bom e apontava unicamente para o mal, com uma miopia que foi o resultado da ignorância.
Muitos desses críticos, se não estivessem mortos hoje, ficariam estupefatos ao conhecer as cifras que a indústria do livro policial move, as filas que se formam nas feiras para pegar autógrafos e os milhões de adeptos que têm o gênero em qualquer de suas variantes, prova cabal de que a arte sempre abre caminhos apesar das barreiras.
Ainda que alguns opinem que o fenômeno tenha chegado ao fim, é preciso reconhecer a revitalização do gênero pelos autores nórdicos. Escritores como o desaparecido Stieg Larsson, Henning Mankell, Jo Nesbo ou Arne Dahl demonstraram que a violência e a corrupção estão à espreita até mesmo nos países mais prósperos do planeta. Fascinado pelo contraste do sangue na neve e por certa morbidez ao saber que na Suécia, Finlândia e Noruega também há problemas, o público respondeu de imediato em escala mundial e as vendas dispararam como nunca.
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Na origem estava Poe
Hoje se aceita que Edgar Allan Poe foi o pai do gênero. A publicação na década de 1840 de ‘Os Crimes da Rua Morgue’, ‘O Mistério de Marie Roget’ e ‘A Carta Roubada’, protagonizados pelo detetive Auguste Dupin, marca um antes e um depois no gênero. Nessas obras, Poe criou as bases do gênero, ao exemplificar como um crime poderia ser solucionado graças à racionalidade absoluta de um investigador. Além disso, apresentou uma das cenas mais clássicas do policial: o assassinato inexplicável, já que o cômodo onde está o cadáver está fechado por dentro.
À luz desse faro precursor surgem outros detetives que farão história, como o mítico Sherlock Holmes, Hercule Poirot, Miss Marple, Maigret ou o Padre Brown. O sucesso imediato desses personagens não é apenas fruto do talento de seus criadores, mas também das características de uma época. Michel Foucault explica com maestria: “Tem sido absolutamente necessário constituir o povo em sujeito moral, separá-lo, então, da delinquência. Separar claramente o grupo dos delinquentes, mostrá-los como perigosos não apenas para os ricos, mas também para os pobres; mostrá-los carregados de todos os vícios e origem dos maiores perigos. Vem daí o nascimento da literatura policial e a importância dos jornais de sucesso, dos horríveis relatos de crimes”.
Isso é particularmente certo no caso dos Estados Unidos, onde além da imprensa marrom surgem no começo do século XX as famosas revistas Pulp, que serão o berço da novela negra. Escritores como Dashiell Hammett, Raymond Chandler e Jim Thompson publicam ali relatos de detetives e heróis que, diferentemente dos britânicos, estão dispostos a sujar as mãos. Surge assim um subgênero de linhas bem definidas: personagens ambíguos que têm um lado obscuro, menos dedução racional e mais investigação em campo, e uma critica social bem marcada.
Muitas das obras desses autores seriam logo levadas ao cinema com grande sucesso (Perdição, O Falcão Maltês, O Sono Eterno), o que ajudou a popularizar um gênero que teve em Humphrey Bogart seu ícone mais conhecido. Na América Latina, a coleção El Séptimo Círculo, publicada entre 1945 e 1983, e dirigida por Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares durante os primeiros dez anos, fez com que milhões de leitores se convertessem em adeptos da novela policial.
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Assassinato à moda uruguaia
No Uruguai, escritores como Juan Carlos Onetti e Mario Levrero conseguiram, com suas preferências confessadas, que o público lesse o mesmo que eles. É o caso de Renzo Rossello (Trampa para ángeles de barro, Las Furias, El combatiente), um dos autores nacionais de maior prestígio na matéria policial. Desde muito jovem se deleitava com as histórias de Sherlock Holmes, mas foi graças a Onetti que conheceu os reis da novela negra, que lhe despertaram a necessidade de escrever.
Levou tão a sério que decidiu direcionar sua carreira como jornalista para a cobertura de crimes: “Eu queria descer ao barro, ver as coisas no terreno. Também pensava que do meu trabalho poderia surgir material que me servisse para escrever ficção. Não foi exatamente o que aconteceu, mas essa tarefa jornalística me ensinou muito”. Embora Rossello estivesse em conformidade com essa fase, teve que abandoná-la. “Foram muitos anos e acabei adoecendo. Entendo que no jornalismo temos que trabalhar a partir da sensibilidade pessoal porque senão não funciona, e isso estava me fazendo muito mal. Estava adoecendo, tinha muitos pesadelos”, revela.x
Sobre o sucesso atual da novela policial, Rossello considera natural. “O mais obscuro sempre nos atrai. Não creio nas pessoas descartam ser positivas ou portadores de uma visão otimista da vida. A literatura negra é uma indagação sobre o lado mais sombrio de nós mesmos”, ressalta. Mas ele acredita que tem sido fundamental a hibridização com outros subgêneros, como a ficção científica, o romance político, o gótico e os quadrinhos. “Essas possibilidades de ‘cruzamento de raças’ tem dado força e sobrevivência ao gênero noir”, afirma.
Algumas das obras de Rossello foram publicadas na coleção Cosecha Roja, da editora uruguaia Estuario, criada em 2010, e que já publicou 17 livros policiais, 15 deles de autores nacionais. Marcela Saborido, responsável pela seleção, disse que o empreendimento surgiu de uma necessidade editorial já que lhes chegavam muitas obras que não tinham lugar no catálogo. Para Saborido, a novela policial uruguaia “se caracteriza por retratar muito bem a polícia e os criminosos, que também são muito identificáveis”. Sobre o impacto da coleção, acredita que ajudou a quebrar o preconceito sobre o gênero no país. “Muita obra boa não era publicada. Creio que houve uma mudança e por isso estão saindo tantos livros e tantos autores novos”, destacou.
O caso de Cosecha Roja é único no Uruguai mas não no mundo. Editoras de todas as partes, sempre atentas ao mercado, tem se voltado à publicação de novelas policiais em diferentes coleções. Na Argentina, destaca-se Negro Absoluto, a cargo do escritor e guru de toda uma geração Juan Sasturian. Há também Extremo Negro, coordenada pelo escritor Carlos Santos Sáez. Na Espanha, Salamandra Black, uma aventura editorial do selo da lagartixa, já publicou seis títulos mais que aceitáveis de autores contemporâneos, alguns tão na moda como Nic Pizzolatto, criador da série televisiva True Detective.
(Imagens: Wikipedia, divulgação, El Pais, Ox and Pidgeon)
Jornalista. Trabalha com curadoria de informação, gestão de mídias sociais e criação de conteúdo digital. Em 2014, lançou o e-book “Os Maiores Detetives do Mundo” (Chris Lauxx). Contato: analaux@gmail.com
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