Johnny vai à guerra, de Dalton Trumbo

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Pode um livro ser ao mesmo tempo bem-vindo e totalmente inoportuno? “Johnny vai à guerra” mostra que sim. Lançado em 1939, dois dias depois do começo da Segunda Guerra Mundial, o romance pacifista de Dalton Trumbo provocou todo tipo de reação à esquerda e à direita. Os Estados Unidos estavam prestes a entrar em mais um conflito armado e a contundência da crítica e a força narrativa daquelas páginas reativariam memórias parcialmente sepultadas da guerra de 1914. O livro trouxe sucesso e reconhecimento a Trumbo, que ganhou o National Book Award – que na época tinha outro nome – e o romance esgotou nas livrarias. Apesar disso, o autor e seus editores decidiram não reeditá-lo antes que a guerra terminasse: o mundo estava muito atormentado com tudo o que se passava no front.

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Preso a uma cama de hospital, sem pernas, braços, olhos, nariz e boca, Johnny está surdo e não consegue se comunicar com o resto do mundo. Enquanto tenta compreender sua condição, mergulha e emerge de sonhos e devaneios. Enquanto luta pela vida, transita entre o passado simples na interiorana Shale City com os amigos e a namorada e o estado vegetativo do presente de não-se-sabe-onde. O que sobra de alguém assim? Uma massa de carne e pensamentos inaudíveis? Memórias amarrotadas e um frágil naco de consciência? O desejo de viver e a vontade de morrer? Joe se desespera, não se conforma, reage: “Esta não é uma guerra para você. Você não tinha nada a ver com isso. O que é que lhe importa tornar o mundo um lugar seguro para a democracia? Tudo o que você queria Joe era viver”.

Privado da maioria dos sentidos humanos, Joe se convence de que o mundo não terminou com aquele estrondo na trincheira e que a tudo escureceu. E busca na sensibilidade dos poros a medida da passagem do tempo. Quando a temperatura sobe, intui que é dia e que o sol toca sua pele; quando seus pelos se arrepiam, imagina estar anoitecendo ou de madrugada. As constantes trocas de roupa de cama, a limpeza e os cuidados médicos dão a Joe elementos para reconstruir uma rotina hospitalar, a evolução dos acontecimentos e alguma recuperação. O leitor acompanha atônito aquele drama monumental e é difícil não se enfurecer com os senhores da guerra e os promotores do teatro mortal que faz com que desconhecidos matem desconhecidos em nome de causas tão questionáveis. Lutar pela liberdade, pela decência, pela paz? Johnny sacoleja naquele leito que lhe serve de sarcófago e de útero: “Não senhor qualquer um que tivesse ido para as trincheiras do front para lutar pela liberdade era um tremendo idiota e o sujeito que o convenceu a ir para lá era um mentiroso”. Queria gritar, berrar, denunciar ao mundo. Restava bater a cabeça!

Dividido em duas partes – Os Mortos e Os Vivos -, “Johnny vai à guerra” narra a trágica histórica de Joe Bonham, jovem de 20 anos que vai lutar na Primeira Guerra e tem seu corpo destroçado por uma bomba no último dia de combate.

Avessa a subterfúgios, a prosa de Dalton Trumbo soca o estômago do leitor sem piedade, ao mesmo tempo em que explora outros flancos narrativos. Subverte a linearidade do tempo, oscila entre primeira e terceira pessoa, e baila incansável no centro do ringue. Faz perceber que o mundo e a vida não estão apenas lá fora, mas acima de tudo dentro do labirinto de nossas próprias sentimentalidades. Como manter ritmo e vigor narrativo em 230 páginas com um protagonista que mal se mexe ou interage com outros personagens? O autor mostra como, e se exibe como um pugilista convencido de sua técnica e estilo. E simplesmente prescinde de vírgulas! Vá, leitor! Vasculhe todas as páginas do romance e encontre alguma! Corajoso, o recurso provoca alguns efeitos desestabilizantes: dá cadência e velocidade vertiginosa à leitura, incita o leitor a buscar sentidos no vazio da pontuação e quase enlouquece o tradutor! Se a preocupação habitual é revisar os originais para entregar à editora com todas as vírgulas, desta vez, José Geraldo Couto precisou se ocupar de cortar todas as intrometidas, o que revelaria algum descuido indesejável!

O título original do romance é “Johnny got his gun” (Johnny pegou sua arma) e tem uma cavalar dose de ironia. A frase foi usada como slogan para atrair voluntários norte-americanos para se alistar nas forças armadas no nascente século 20, e se popularizou como parte de uma canção de guerra (ouça aqui e acompanhe a letra). . Na tradução para esta edição da Globo Livros, o romance foi rebatizado, ficando mais referencial e garantindo maior permanência, afinal, é um clássico pacifista. A edição do selo Biblioteca Azul conta ainda com uma honesta introdução do próprio Trumbo, datada de 1959, e um adendo irado de 1970. Temos a oportunidade de sentir a voz do autor em três momentos distintos, mas seu timbre e personalidade não sofrem oscilação. Estão lá os contornos do roteirista de sucessos como Spartakus (1960) e Papillon (1973) e do polêmico comunista que se recusou a delatar colegas para uma caça às bruxas em Hollywood. Estão lá a irreverência, a competência e a acidez do personagem que nos foi apresentado por Bruce Cook em “Trumbo” (Ed.Intrínseca) e pela cinebiografia de 2015, protagonizada por Bryan Cranston.

Era natural que fosse parar nas telas de cinema, pois Trumbo era um homem desse metiér. Na lista negra da indústria por suas posições políticas, continuou escrevendo roteiros sob pseudônimos, fez aparições esparsas como ator e ocupou a cadeira de diretor uma única vez, justamente na versão fílmica de seu “Johnny vai à guerra”, em 1971.

A edição que chega aos leitores brasileiros merece atenção não só pelas relevantes notas de tradução, repletas de preciosas referências históricas, mas por um cuidadoso apuro gráfico. Leitor, explore a capa de Daniel Justi, que traz uma figura reveladora do que sobrou de Johnny e uma mensagem cifrada em alto relevo! Uma dica: o mistério está nas pontas dos dedos de quem segura o volume. A solução está no toque sensível, nas batidinhas quase imperceptíveis sobre o travesseiro, nos espasmos que revelam a vida e a necessidade de decidir o que dela fazer.

Desta forma, “Johnny vai à guerra” tem um último trunfo: não denuncia a tragédia bélica pela pilha de mortos e sangue que escorre pelos campos, mas pelas marcas deixadas nos vivos, amputados em seus corpos e mutilados nas almas. A guerra é o pior crime. Ela arrasta para a linha de frente familiares e amigos que ficaram rezando e chorando por seus soldados. É o pior crime porque traveste de coragem a covardia dos seus senhores: quem comanda nunca se arrisca em perder a vida. A guerra é o pior crime porque não abriga honra verdadeira, sua lealdade é feita de mentiras e o exército vitorioso marcha para casa mancando ou em sacos pretos.


Trumbo e o grito surdo de Johnny mostram que a guerra não é bonita. Não cheira bem, nos paralisa e nenhuma palavra preenche seu vazio. Talvez por isso, Joe não tenha membros, não enxergue e nem consiga se comunicar. O trágico personagem funciona como uma metáfora dos danos devastadores e irreversíveis que ela causa. Sua (sobre)vida é um drama que se repete para além da Primeira, da Segunda, de todas as guerras e de todos os Johnnies. No momento desta resenha, o presidente dos Estados Unidos Donald Trump fazia a sua primeira viagem internacional, onde assinou um contrato de 110 bilhões de dólares para vender armas aos sauditas. Foi recebido com pompas pelo rei Salman, e juntos “celebraram” o acordo. Não datado, o romance de Trumbo ainda serve de alerta, embora os senhores da guerra estejam mais surdos que o próprio Johnny.

 

Título: Johnny vai à guerra
Autor: Dalton Trumbo
Tradução: José Geraldo Couto
Editora: Biblioteca Azul
Páginas: 232
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SINOPSE – Que absurdos levam uma civilização à guerra? Essa talvez seja a questão mais provocativa que perpassa Johnny vai à guerra, clássico cult do norte-americano Dalton Trumbo sobre os destroços da Primeira Guerra Mundial. A mais provocativa, mas não a única neste livro que se transformou numa bandeira contra a luta armada e a violência assim que foi lançado, em 1939. Narrado por Joe, um sobrevivente de guerra gravemente mutilado, o livro é uma correnteza de pensamentos ora desesperados ora contemplativos que acometem esse homem imóvel num leito de hospital. Ainda que seus sentidos estejam comprometidos, o que o deixa incapaz de se comunicar, Joe está consciente. Sem saber em que país está ou se sua identidade foi reconhecida ou não, ele transborda os limites do corpo para chegar a um fluxo de consciência que transita entre as memórias e o medo de um futuro sem perspectiva. A brutalidade perturbadora do depoimento, ao relembrar as experiências bélicas, é pontuada pelo instigante desenvolvimento de habilidades mentais e sensoriais pelo qual Joe se obriga a passar para tentar se comunicar e distinguir realidade de imaginação. Escrita sem nenhuma vírgula, a narrativa é acelerada como um sonho em que lembranças, desejos e traumas se juntam para formar um roteiro cinematográfico – certamente uma influência que Trumbo recebeu de seu premiado trabalho como roteirista em Hollywood. A capacidade narrativa e o tema tão atual desde o momento em que veio a público fizeram deste livro uma leitura urgente e um protesto atemporal, tanto que ressurgiu na geração da Guerra do Vietnã e chega até o nosso tempo, tão assombrado pelas questões de violência e lutas armadas em nome da liberdade.

 

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2 comentários em “Johnny vai à guerra, de Dalton Trumbo”

  1. Ótima análise. Tenho o DVD do filme, o qual assisti algumas vezes e que me impactou muito – mais no sentido ontológico que bélico ou político. Muitas vezes me flagrei, e ainda me flagro, pensando sobre o que seria de nossa consciência sem um corpo físico que a sustente. Ou melhor, sem qualquer sentido como visão, audição, paladar… Uma consciência humana pura, sem contato com o mundo exterior. Uma consciência puramente consciente de si mesma, porém sem conseguir identificar absolutamente nada no universo além de si mesma. Cheguei à conclusão de que isto seria o inferno. E tal é a condição do personagem principal da obra de Trumbo: ele foi levado ao inferno pelos políticos e deixado lá para observação médica. Aterrorizante. Trumbo foi um grande escritor e certamente merece ser mais lido e reconhecido, tendo em vista que durante muitos anos permaneceu ostracizado devido à “caça às bruxas” durante a Guerra Fria.

  2. Sim, é verdade, Tiago. Existem muitas questões de caráter filosófico no livro, da ontologia à ética. Me contive bastante na resenha para não oferecer spoilers, embora tenha deixado algumas pistas ali, que podem ser encontradas por quem leu o livro ou viu o filme. É uma grande história, e Trumbo um magistral contador.
    Obrigado pela leitura da resenha e pelo comentário!

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