Por Josué de Oliveira – Histórias policiais costumam primar pela trama. O gênero, como todos os outros, é definido por uma série de características que situam o leitor em um terreno a ser percorrido. Esses aspectos não são absolutos e é grande o número de obras que os desafia e reconfigura. O básico, porém, está sempre lá: crime, detetive, criminoso, e, no caminho até o desfecho, temos a investigação e o desenrolar das pistas, também com sua carga de elementos próprios e clichês.
Filme noturno (Intrínseca, 622 páginas), segundo romance da norte-americana Marisha Pessl, não foge dessa receita básica. Tudo começa com a morte da jovem Ashley Cordova, no que aparenta ser um suicídio. As circunstâncias do ocorrido intrigam o premiado jornalista Scott McGrath, que inicia uma investigação paralela à da polícia. Ele contará com a ajuda de Nora, última pessoa a ver a garota com vida, e Hopper, um problemático rapaz que conheceu a morta na adolescência.
Ashley era uma exímia pianista e chamou atenção na adolescência pelo talento na execução de peças complexas. Mas não era o talento para a música o que mais a destacava. Todos se lembravam dela como a filha de Stanislas Cordova, recluso diretor de cinema transformado ao longo das décadas em objeto de culto pelos fãs de seus trabalhos controversos e aterrorizantes, alguns até mesmo proibidos de chegar às telas. Tudo em torno de Cordova é obscuro: seu passado desconhecido, a temática de seus filmes, os motivos de seu isolamento do público. Poucas informações, muitos segredos, a própria imagem do gênio completamente devotado a sua obra. Homem e mito fundidos numa coisa só. Scott já tentou investigá-lo no passado, mas isso lhe custou a carreira – o que não o impede de se arriscar novamente na tentativa de descobrir o mistério por trás da morte de Ashley.
Tomado como um todo, não há dúvida de que Filme noturno é um romance policial, mas busca esticar seus limites até onde os livros do gênero geralmente não vão. Trata-se de um livro marcado por imagens. Primeiramente em um sentido objetivo e literal: há uma preocupação em mostrar diversos elementos que, normalmente, seriam apenas descritos ou citados. Quando Scott encontra o CD lançado por Ashley, a capa é reproduzida em seguida. O perfil da garota para uma revista surge pouco depois, exatamente como se veria em uma publicação verdadeira. Em outro momento, Scott acessa o site Blackboards – espaço virtual onde os cordovitas, fãs inveterados de Cordova, se reúnem –, e as páginas aparecem em sequência, mostrando o fórum onde a comunicação ocorre. Fotografias aludidas por personagens, anotações feitas por Scott, transcrições de conversas telefônicas, fichas de instituições de saúde; o leitor vê exatamente o que os personagens veem à medida que estes conteúdos vão surgindo na narrativa.
É uma estratégia eficiente no sentido de provocar interesse e imersão na história, que ganha solidez apesar de seu enredo mirabolante. A principal qualidade de Filme noturno é esse investimento na apresentaçãodo universo dentro do qual a trama se situa. Isso pode ser percebido sobretudo na história de fundo envolvendo os filmes de Cordova: além de delinear as tramas e os detalhes das filmagens de cada um, a autora chega a criar um especialista na obra do diretor, que explica seus principais temas e enfatiza o mistério por trás de sua figura. Stanislas Cordova e tudo que se relaciona com ele foi resultado de um intenso e detalhado trabalho de criação que torna a leitura ainda mais envolvente.
Apoiando-se na estrutura básica do policial, o livro é muito bem-sucedido enquanto exemplar do gênero. Apreciadores não ficarão desapontados. No entanto, Filme noturno também flerta com outros gêneros, sobretudo o terror – e cresce ainda mais nesses momentos. Pessl tem um bom olhar para construções escuras e decadentes, casas imponentes e misteriosas, e conduz sequências opressivas que emulam o suspense de filmes em que alguma coisa escondida nas sombras persegue os heróis. As descobertas vão acontecendo aos poucos, marcando um ritmo equilibrado que jamais deixa a narrativa enfadonha, mesmo com suas mais de 600 páginas. Além disso, as respostas apresentadas pela autora para as muitas perguntas levantadas ao longo da trama são convincentes e criativas, ancoradas no rico universo criado.
Apesar de não escapar de certos clichês e desenvolvimentos previsíveis, o trio de personagens principais sustenta bem a história. Pessl é eficaz sobretudo na construção dos laços entre eles. Por sua vez, Ashley e Cordova, a primeira morta e o segundo sempre imerso nas sombras, são construídos a partir de memórias. O resultado é um retrato multifacetado e contraditório de ambos, apenas mais um entre os muitos mistérios que o livro apresenta.
Oferecendo um final enigmático, que desafia a imaginação e mostra fidelidade ao que foi desenvolvido até ali, Filme noturno é um policial com ares de terror – e convincente em ambas as vias.
Título: Filme Noturno
Autora: Marisha Pessl
Editora: Intrínseca
Páginas: 622
Ano: 2014
Este livro no Skoob
SINOPSE: Com uma narrativa ágil, pontuada por recortes de jornal, páginas da internet, relatórios policiais e bilhetes manuscritos, Filme noturno é um thriller que mantém o leitor preso até a última página. Em uma noite fria de outono, Ashley Cordova é encontrada morta em um armazém abandonado em Manhattan. Embora a polícia suspeite de suicídio, o jornalista Scott McGrath acredita que exista algo mais por trás dessa história. Seu interesse pelo caso não é gratuito: Ashley é filha do famoso e recluso diretor de filmes de terror Stanislas Cordova, um homem que não é visto em público há mais de trinta anos e que, no passado, teve um papel trágico na vida de McGrath. Impulsionado por vingança, curiosidade e necessidade de descobrir a verdade, o jornalista é atraído para o horripilante e hipnótico mundo de Stanislas. Da última vez que chegou perto do cineasta, McGrath perdeu o casamento e a carreira. Dessa vez, pode acabar perdendo muito mais.
Formado em Estudos de Mídia pela UFF e vive em Niterói, RJ. Trabalha na área de desenvolvimento de livros digitais. Gosta de ler, escrever, ver filmes esquisitos e curte bandas que ninguém conhece. Atualmente, revisa seu primeiro romance policial.
Muito boa a sua resenha. Tem uma resenha sobre o livro no meu blog e também gostamos muito.
Bem escrito e ótima capa!
Bjss