Nossos detetives, parte 2: O detetive particular

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hardboiled

Como vimos no primeiro texto da série, os detetives amadores – excêntricos, aristocráticos, brilhantes – tiveram a predominância entre os grandes personagens da literatura policial desde a origem desta, no século XIX, até o fim da Era de Ouro, em meados dos anos 1930.

Mas, ainda nos anos 1920, um novo tipo de personagem entrou em cena, trazendo renovo ao gênero: o detetive particular.

Enquanto os detetives amadores têm uma herança europeia, o detetive particular é um fenômeno notadamente norte-americano. O próprio gênero recebeu um tratamento diferenciado nos EUA, o que pode ser creditado a autores como Dashiell Hammett e Raymond Chandler. Seus textos se afastavam de elementos muito comuns nos romances policiais populares da época. As histórias – publicadas inicialmente em revistas pulp – eram mais cruas e violentas; ambientavam-se em grandes centros urbanos, retratando as classes mais baixas e os tipos criminosos que os habitavam; tinham uma linguagem popular, coloquial. Em lugar de intrincados assassinatos com venenos exóticos ou mistérios de quarto fechado, comuns nos romances policiais clássicos, o que se tinha eram situações complexas, por vezes envolvendo uma grande cadeia de eventos, interesses e crimes diferentes. Esse seguimento da ficção policial ficou conhecido como hardboiled (1), e nele o detetive particular toma o centro do palco.

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“Encrenca é o meu negócio” (2)
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As diferenças entre o detetive particular e o amador começam nas motivações. Enquanto muitos dos detetives amadores eram privilegiados em sua condição financeira, dedicando-se às investigações apenas como hobby, o detetive particular é um representante da classe trabalhadora igual a tantos outros. Seu interesse primário não é o desafio intelectual que determinado crime representa, mas pagar o aluguel – e jamais ficar sem um maço de cigarros.

A figura clássica do detetive particular é a de um outsider. Seu trabalho é incomum e se situa fora dos padrões empregatícios tradicionais. Geralmente mantém poucas relações sociais. É solitário e independente. Durão. Sua vida gira em torno do trabalho. É cínico e desconfia das figuras de autoridade. Responde a um conjunto muito particular de regras. Apesar de vender sua força de trabalho ao cliente que pagar, é a si mesmo que verdadeiramente responde. Esse compromisso com o próprio código de conduta pode levá-lo a cometer atos considerados dúbios ou moralmente questionáveis, como mentir, apelar para violência ou fazer justiça com as próprias mãos, um comportamento que reflete o mundo caótico e ambíguo em que vive.

archerAlguns estudiosos argumentam que existe um forte paralelo entre o detetive particular hardboiled e o herói dos antigos faroestes. Ambos têm em comum a moral e o senso de justiça próprios que os guia e o fato de estarem, cada um a sua maneira, à margem da sociedade. Ambos lutam contra um mundo corrupto que tenta intimidá-los e rechaçá-los a força e, como bons heróis clássicos, não se deixam vencer.

O detetive particular também é comumente o narrador das próprias histórias. É a partir de seus olhos que entendemos não apenas o caso investigado, mas o próprio universo em que ele se desenrola. Testemunhamos seus pensamentos irônicos, ouvimos seus constantes diálogos internos. Nós o entendemos a partir dele mesmo.

Seu método de trabalho não se parece com o do brilhante amador, a quem por vezes bastava analisar as pistas coletadas por outros para surgir, então, com a solução do crime. O detetive particular não é um gênio da dedução, mas um trabalhador. Seu método consiste em ir e vir pela cidade coletando informações, interrogando suspeitos, desenterrando pistas a força, se necessário. É o esforço que lhe traz a recompensa. Sua inteligência se manifesta na forma de astúcia e pensamento rápido para extrair segredos de alguém ou lidar com situações arriscadas.

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Continental Op, criado por Dashiell Hammett, é um dos primeiros exemplos que vem à mente quando se fala de detetives particulares. Seu nome jamais é citado; tudo que sabemos sobre ele é que é um dos trabalhadores (operatives) da agência de detetives Continental. Aparece em dezenas de contos de Hammett publicados na Black Mask (3) e alguns romances, como Seara Vermelha.  Outra criação famosa do autor é Sam Spade, de O Falcão Maltês, um dos grandes clássicos do gênero.

O irônico Philip Marlowe, criação de Raymond Chandler, é o mais popular dos detetives particulares hardboiled. Protagonista de sete  romances (nove, contando dois lançados após a morte de Chandler por outros autores) (4) e diversos contos, Marlowe é um homem durão e, ao mesmo tempo, um sentimental incorrigível. Foi interpretado por Humphrey Bogart na adaptação ao cinema de The Big Sleep, primeiro romance de Chandler.

Okathleenutros representantes dessa categoria são Lew Archer, criado por Ross McDonald; o violento Mike Hammer, de Mickey Spillane; Easy Rawlings, de Walter Mosley; Matthew Scudder, de Lawrence Block; Elvis Cole, de Robert Crais; o casal Patrick Kenzie e Angela Gennaro, de Dennis Lehane.

Algumas das representantes femininas são V. I. Warshawski, de Sarah Paretsky (interpretada no cinema por Kathleen Turner); Kinsey Milhone, protagonista de uma bem sucedida série escrita por Sue Grafton; Hannah Wolfe, de Sarah Dunant; Claire Conrad, de Melodie Johnson Howe.

É isso por enquanto. No próximo e último texto da série, falaremos do detetive policial. Fiquem ligados.
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NOTAS

1 – O termo vem do processo de cozimento de ovos: eles se tornam mais duros com a fervura. O mesmo pode ser dito dos detetives nessas histórias: eram endurecidos pelas adversidades que enfrentavam.

2 – Nome de um volume de contos de Raymond Chandler (original: Trouble is my business).

3 – Revista pulp onde Hammett, Chandler e outros autores publicaram muitas de suas histórias.

4 – Amor e morte em Poodle Springs, que ficou inacabado com a morte de Chandler em 1959, foi terminado por Robert B. Parker e lançado em 1988, quando do centenário do nascimento do autor. Mais recentemente, o premiado John Banville foi escolhido pelos herdeiros de Chandler para reviver sua mais famosa criação. Utilizando seu já tradicional pseudônimo Benjamin Black, ele lançou A loura de olhos negros.

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(Imagens: Thrilling Detective, divulgação)

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