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Das paredes, meu amor, os escravos nos contemplam, por Marcelo Ferroni

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Por Josué de Oliveira – Há um subgênero do romance policial conhecido como crime de quarto fechado. Talvez você não esteja familiarizado com o termo, mas muito provavelmente conhece alguma narrativa que se encaixa nele. Em sua forma mais clássica, consiste num mistério em que alguém é assassinado num cômodo de onde não se pode sair, seja pelas janelas e portas estarem trancadas por dentro, seja por alguma outra obstrução. O ponto é que a saída do assassino parece, a primeira vista, ser impossível; a pergunta que imediatamente se enfia na cabeça de todos, antes mesmo do “Por quê?”, é o “Como?”. Ah, outro ponto importante é que todos os presentes no local onde o assassinato se deu – geralmente uma casa – são potenciais suspeitos.

O conceito é maleável, e a cena do crime não precisa necessariamente ser um quarto. O importante é não dar para sair. O assassinato parece impossível a primeira vista, e esse é o apelo do mistério a se desvelar. Lançado no ano passado, “Das paredes, meu amor, os escravos nos contemplam” (Companhia das Letras, 272 páginas, R$ 42,00), de Marcelo Ferroni – de agora em diante apenas Das paredes –, nos coloca novamente fora do quarto e propõe o desafio de descobrir como aconteceu o crime lá dentro.

A história acompanha Humberto Mariconda, escritor. Frustrado pelo desinteresse demonstrado pelos cadernos de cultura por seu primeiro livro, A porrada na boca risonha e outros contos, ele é convidado por Julia Damasceno, garota que conheceu há alguns meses e com quem teve um rápido envolvimento, para um fim de semana numa fazenda histórica da família. Todos estão presentes: pai, mãe, irmãs, cunhados, primos, namorados e namoradas, cada um levando consigo segredos e interesses não revelados. Um temporal acaba com a energia elétrica, e o rio que passa pela propriedade transborda, prendendo todos na casa. Quando dois tiros soam do escritório trancado, a porta precisa ser arrombada e, lá dentro, o patriarca da família, Ricardo Damasceno, é encontrado morto.

A receita do assassinato com número limitado de suspeitos é clássica e mantém sua força: o leitor automaticamente se sente chamado a investigar aquele crime, desvendar aquelas pessoas. Em Das paredes, o autor é honesto é dá ao leitor as mesmas chances de descobrir o desfecho que o detetive (ou detetives) da história tem. Ferroni recorre constantemente a diálogos, que não apenas dão dinamismo à narrativa, mas também vão revelando bem aos poucos detalhes importantes sobre os negócios da família, as relações entre os parentes, os ódios, ressentimentos e rixas existentes no seio dos Damasceno, o que ajuda a criar o terreno adequado para o mistério.

Os visitantes são, em sua maioria, interessantes, daquela maneira um pouco exagerada e caricata que personagens de histórias do tipo costumam ser. O autor maneja bem o grande número de personagens hospedados no casarão, não permitindo que sejam apenas recipientes para as suspeitas do leitor e do(s) detetive(s) e dando a cada um momentos de destaque e singularidade. Trata-se de um coro peculiar e por vezes enervante de vozes e personalidades, que aos poucos se revela mais e mais instável e virulento.

O desenvolvimento da trama é dinâmico – os diálogos sempre carregando a narrativa –, o desfecho, inteligente e bem orquestrado: uma solução racional e possível para o que se pensava absurdo, como todo crime de quarto fechado merece. Porém, outros aspectos do livro comprometem os bons resultados alcançados pela trama policial em si.

Ferroni busca o tempo todo apresentar uma voz própria, o que é louvável. No entanto, algumas de suas escolhas desafiam o entendimento. Por exemplo: os diálogos se bifurcam e entrelaçam de modo frequentemente confuso, sendo necessário dobrar a atenção para entender quem está falando. Uma vez que se acostuma com o recurso, consegue-se seguir sem grandes problemas, mas fica a pergunta: por quê? Em que isso contribui para a narrativa? Por que essa maneira e não outra, mais tradicional e acessível?

A questão do ponto de vista gera questionamentos semelhantes. Boa parte da história é narrada em primeira pessoa por Humberto, mas uma terceira pessoa assume de tempos em tempos, sem que fique claro o motivo da mudança. E não me entendam mal: em termos meramente estilísticos, o resultado é bacana – por vezes a transição entre a primeira e a terceira pessoa ou vice-versa ocorre de modo discreto, quase imperceptível, o que mostra a habilidade do autor –, mas o recurso soa absolutamente gratuito dentro da história sendo contada. Trata-se de uma decisão estranha, cujos propósitos ficam obscuros.

A essas ressalvas acrescente-se o fato de a história avançar num ritmo inicialmente lento, e o crime demorar bastante para ocorrer. Mesmo assim, a leitura de Das paredes foi uma boa experiência, ora divertida, ora desafiadora, do tipo que não se encontra todo o dia. Boa dica para quem está atrás de alguma coisa fora da caixa.

 

SOBRE O LIVRO

Título: Das paredes, meu amor, os escravos nos contemplam
Autor: Marcelo Ferroni
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 272
Ano: 2014
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SINOPSE – Um escritor frustrado folheia todos os dias o jornal em busca de uma resenha para seu primeiro livro. Todavia, A porrada na boca risonha e outros contossegue ignorado pela crítica, enquanto Humberto vê o trabalho de seus rivais sendo incensado na imprensa e adorado pelo público. O único alento do escritor é Julia, a garota que conheceu por acaso e que agora o leva para um fim de semana na serra, onde ele irá conhecer sua família. A casa da família de Julia é uma majestosa propriedade da época do Império, um lugar onde há não muito tempo os senhores eram atendidos por seus escravos. Hoje, a casa serve de veraneio para os Damasceno, família paulista que fez fortuna vendendo filtros de água. A casa é a menina dos olhos do patriarca Ricardo, obcecado com sua restauração e com documentos e objetos relativos ao passado do local. Ao longo do fim de semana, as inúmeras tensões entre familiares, funcionários e amantes, acumuladas em anos de ressentimento e desconfiança, irão tomar forma num crime brutal. Valendo-se da tradição do mistério de quarto fechado, em que um personagem é morto em um cômodo trancado por dentro, Ferroni irá partir de um enunciado conhecido – um crime em que todos são suspeitos – para colocar em xeque os clichês do gênero, ao mesmo tempo que constrói um romance de enorme força literária sobre a família, o amor e o medo.

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