Por Rogério Christofoletti – Não podemos esquecer: o mundo dos livros também é um mercado. Por isso, é atravessado por interesses não exclusivamente artísticos e por ações de marketing. Essas condições garantem que as engrenagens da indústria girem, mas também desviam parte da nossa atenção sobre o que realmente interessa: a literatura. A novidade mais recente do gênero policial no Brasil não foi um lançamento bombástico mas as especulações sobre quem estaria por trás do nome Isabel Moustakas, que chegou às livrarias com “Esta terra selvagem” (Cia das Letras, 2016).
Embora a orelha do livro informe que a autora nasceu em 1977 em Campinas, seja formada em direito e more em São Paulo com o marido e a enteada, um zum-zum-zum entre escritores e jornalistas vem alimentando a versão de que se trata de um pseudônimo. Luisa Geisler, que também está no catálogo da editora, caiu na brincadeira e assumiu provisoriamente a identidade da nova autora. Não foi desmentida nem confirmada, e ainda continuam a falar mais de Isabel Moustakas do que de seu livro de estreia. Isso não é necessariamente bom.
Se foi mesmo uma jogada de marketing, o lance até provoca seus efeitos, mas é um tiro curto. Outras razões podem ter provocado o Caso Moustakas: talvez o escritor (ou escritora) não possa assumir sua verdadeira identidade por exigências contratuais, para se embrenhar num novo gênero literário ou ainda por conflito de interesses… Qualquer que tenha sido o motivo, é preciso ter algo a mais para fixar um autor numa prateleira. E pelo que vi nas 113 páginas de “Esta terra selvagem”, Isabel Moustakas não esconde ali apenas a sua identidade. Fechamos o livro com uma sensação de outros vazios.
A começar pela estrutura. Não é um romance, é uma novela policial. Nenhum demérito nisso, até porque algumas histórias de crime funcionam melhor em formatos mais compactos. A força da narrativa fica mais bem armazenada e seus efeitos, mais evidentes. Neste sentido, Moustakas nos apresenta uma novela sobre crimes de ódio e de intolerância racial e de gênero numa São Paulo violenta e atual. Um grupo supremacista passa a caçar e a barbarizar pessoas na selva de pedra. Um repórter do Estadão se vê envolvido na trama, tentando reunir provas que possam incriminar um punhado de homens violentos. Mas se a metrópole é um bom cenário para tantas cenas sangrentas – e Moustakas não economiza nisso! -, ela só se apresenta como um conjunto de ruas e bairros, e não como uma metáfora do mundo em que vivemos. A São Paulo de Moustakas só é árida porque oferece um desfile de atrocidades quase banalizadas e não porque reúna em si fatores humanos que façam da cidade uma terra selvagem. Selvagens são algumas pessoas dali, como poderiam ser de João Pessoa ou Manaus, em outras latitudes! Primeiro clichê de muitos, a cidade-como-selva é quase o sobrenome da capital paulista, o que livra Moustakas de construir um set já presente no imaginário coletivo.
Mas os personagens que desfilam por aquelas páginas são também pouco explorados psicologicamente, e pouco nos é permitido conhecer deles. Sabemos que o protagonista se chama João, tem 32 anos, seu pai mora em Santos, e ele já foi casado. Nada mais. Não sabemos como ele é fisicamente, qual seu sobrenome, se tem um passado obscuro… E se isso acontece com quem está no centro dos acontecimentos, imagine com os entornos…
Outros clichês do gênero se impõem: cenas sanguinolentas para chocar o leitor, um herói ligeiramente ingênuo e unidimensional, e um desfecho de filme de ação. Mas não são apenas esses carimbos que podem incomodar os mais exigentes. Existem as soluções mágicas do tipo deus ex machina e as circunstâncias não respondidas ou explicadas. É muito conveniente para a escritora quando o detetive tem acesso a um diário pessoal de uma vítima, e muito oportuno quando suas pernas o levam para locais importantes da investigação, mesmo que ele não planeje isso.
Por outro lado, não fica claro para o leitor que motivos levaram àquela matança, de quem é o estranho objeto deixado na cama de João no final da história, e como chegaram até ele naquele momento tão difícil. É verdade: tem sido comum que alguns autores não se preocupem em esclarecer tudo em suas tramas policiais, mas alguns elementos não podem ficar nas zonas de sombra, sob o risco de arruinar a estrutura do quebra-cabeças. O enredo nesses livros têm urdidura mais detalhista e consistente, ajudando a dar estrutura e densidade às histórias.
Mas “Esta terra selvagem” não é povoada apenas por deslizes. Rápido de ler, o livro mantém a tensão de forma contínua, e tem um bom ritmo. E diverte! Falta humor, é verdade, mas ele fornece doses homeopáticas de ironia, o que não é a mesma coisa, mas sinaliza rotas de fuga para os que se impressionam demais com mutilações e espancamentos. Um exemplo está no diálogo entre João e Pedro, seu editor, lá pela metade do volume, e que se apresenta como um lampejo de vitalidade diante de tanto sangue, ódio e morte.
Como deu pra perceber nesta estreia, Isabel Moustakas não é misteriosa apenas quanto a sua identidade, mas também em relação ao próprio repertório literário. Não parece ter mostrado tudo o que sabe. Se você tem uma tarde livre e quer escapar para algum lugar inóspito e brutal, siga a autora. Se espera mais de uma história policial, busque outro atalho na cidade.
Título: Esta Terra Selvagem
Autora: Isabel Moustakas
Páginas: 120
Editora: Companhia das Letras
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SINOPSE – Depois de presenciar a morte da testemunha ocular de um crime tenebroso, a vida do repórter João nunca mais foi a mesma. A jovem que assistiu à tortura e ao assassinato brutal dos pais, para depois ser abusada de todas as maneiras, deu fim à própria vida diante dele após relatar cada detalhe perturbador do que vivera. A partir deste terrível episódio, o jornalista irá seguir todas as pistas que possam levá-lo a um possível grupo racista que vem cometendo as piores atrocidades contra imigrantes, negros, judeus, nordestinos, gays e quaisquer pessoas que eles considerem impuras. Mas a única pista que ele tem são os cadarços verde e amarelo que eles usam nos coturnos.
Jornalista, dramaturgo e professor universitário. Já publicou 12 livros na área acadêmica e escreveu oito peças de teatro. É um dos autores do e-book “Os Maiores Detetives do Mundo” (Chris Lauxx).