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Por Josué de Oliveira – Eu nunca tinha lido um romance policial israelense. Essa constatação me sobreveio no instante em que pus os olhos na capa de O Desaparecido (Companhia das Letras, 296 páginas), e me despertou interesse imediato pelo livro, escrito por Dror Mishani, acadêmico especializado em literatura de mistério que fez o salto da pesquisa para a prática com este romance de estreia, lançado em 2011. Mais dois vieram desde então, com direitos vendidos para 15 línguas.
Temos uma trama muito simples: numa quarta-feira à noite, Chana Sharavi vai à delegacia de Holon, no sul de Tel-Aviv, comunicar o desaparecimento de seu filho Ofer, de 16 anos. É atendida pelo experiente policial Avraham Avraham, que a aconselha a voltar para casa e esperar que ele retorne, final mais comum desse tipo de ocorrência. Mas não desta vez. Tem início então uma investigação para traçar o paradeiro do rapaz, que parece ter sumido no ar. Paralelamente, Zeev Avni, morador do mesmo prédio da família Sharavi e ex-professor de inglês de Ofer, desenvolve uma estranha relação com o caso e com a própria figura do adolescente.
“O Desaparecido é um livro em que pouquíssimas coisas acontecem. A narrativa funciona sobretudo pelo apuro no desenvolvimento dos personagens.”
O que no início promete ser um típico romance procedural, onde o policial lida com apenas mais um caso de sua carreira e os muitos aspectos técnicos de uma investigação oficial são apresentados, vai se revelando algo diferente ao tomar o caminho da exploração psicológica de Avraham Avraham e Zeev Avni.
Enquanto lia, não pude deixar de pensar na obra do brasileiro Luiz Alfredo Garcia-Roza, sobretudo Espinosa Sem Saída, de 2006. As semelhanças são tanto de estrutura, com o ponto de vista variando entre o protagonista e o suspeito, quanto de tom, intimista e meditativo.
Mishani tem uma escrita concisa, é pouco dado a descrições e está sempre externando os diálogos internos de seus personagens, revelando desejos frustrados e motivações escondidas. Há sempre uma reflexão ocorrendo nos bastidores das mais corriqueiras ações – ir para o trabalho, tomar café, dar banho num bebê. A janela que o autor abre para a mente de seus personagens, um policial pacato e um professor de classe média, os expõe como seres mais intrigantes do que parecem à primeira vista.
Avraham é um homem sem características marcantes, solitário, vive para o trabalho. Filho único, tem uma relação distante com os pais. Fuma muito. Mantém o inusitado hobby de encontrar soluções alternativas às apresentadas pelos detetives nos desfechos dos romances policiais que lê. Seus dias na polícia israelense são povoados por casos de resolução simples, geralmente sem violência, o que lhe faz acreditar, a princípio, que Ofer retornaria para casa durante a noite ou na manhã do dia seguinte ao registro da ocorrência. Acaba com um conflito interno pela culpa de não ter detectado logo que aquele desaparecimento seria diferente dos demais, sentimento que, ao longo da narrativa, o impulsiona, mas também o sabota. Trata-se – e este é um elemento importante para criação de empatia – de um profissional competente passando por um momento conturbado, lidando com as consequências de um erro, questionando a própria capacidade. Algo que todos experimentamos, a alguma altura da vida.
Por sua vez, Zeev Avni é desde o começo uma figura enigmática, buscando se aproximar dos envolvidos na investigação – de Avraham, em particular – e, ao mesmo tempo, aparentando saber mais do que revela a eles. Marido e pai, ele lida com seus papéis familiares com certo automatismo, os pensamentos sempre se afastando das ações presentes e vagando em direção a Ofer. Nos capítulos pelo ponto de vista do professor, Mishani estabelece um jogo de mostrar e esconder que deixa o leitor em suspenso, perguntando-se o que, afinal de contas, Zeev sabe, o que ele fez. Um outro ponto importante para o desenvolvimento do personagem é sua relação com o ato da escrita, algo que, quando surge na narrativa, o torna ainda mais complexo – e suspeito, dado o conteúdo do que escreve (e isso é tudo o que deve ser dito sobre isso, para não acabar em spoilers).
O Desaparecido tem boa escrita e personagens interessantes, e se apoia nesses elementos. É possível que muitos leitores tenham problemas com a trama, no entanto, e o paralelo com Garcia-Roza ajuda a entender isso. Assim como o brasileiro, Mishani passa muito tempo na cabeça dos protagonistas, e a criatividade exibida na investigação de suas motivações e dilemas não se reproduz na investigação do desaparecimento de Ofer. A própria figura do rapaz poderia ter sido melhor explorada, o que daria mais peso às indigestas descobertas do caso. Além disso, uma curiosa surpresa no final, embora funcione como conceito, dificulta um pouco mais o entendimento dos acontecimentos – o que, estranhamente, parece ser a exata intenção do autor.
O fechamento proposto pelo autor é incomum, e certamente dividirá opiniões, assim como todo o desenvolvimento reflexivo e pouco movimentado da história. Mesmo que cause estranheza a alguns leitores, vale atentar para o trabalho de Mishani com os personagens e a construção temática que culmina no desfecho. São estes os pontos fortes desta estreia literária. De minha parte, fico no aguardo por novos casos de Avraham Avraham.
* Livro cedido pela Companhia das Letras
Formado em Estudos de Mídia pela UFF e vive em Niterói, RJ. Trabalha na área de desenvolvimento de livros digitais. Gosta de ler, escrever, ver filmes esquisitos e curte bandas que ninguém conhece. Atualmente, revisa seu primeiro romance policial.