Por Eder Alex – Nem só de Aladim e Ali Babá vivem as histórias contadas por Sherazade. O universo contido nas narrativas que compõem o livro das Mil e Uma Noites é bem mais amplo do que aquele que nos acostumamos a ver na cultura pop.
Tal como ocorreu com os contos de fadas, que nasceram de uma ampla garimpagem de histórias da tradição oral que foi sendo repassada de geração para geração (posteriormente coletadas, adaptadas e popularizadas por nomes como Charles Perreault, Hans Christian Andersen e Irmãos Grimm), os contos deste clássico da literatura não possuem um autor definido.
Todo esse preâmbulo aí dizendo o quanto a coisa toda foi meio complicada é só para disfarçar e poder dizer que quando comecei a ler esse segundo volume fiquei meio preocupado, pois ali no início aquilo tudo não estava fazendo o menor sentido para mim. Passei pela fase da releitura, depois para a da aceitação de que ok, sou meio burro mesmo, até que, por fim, cheguei em alguns trechos de pura iluminação e eles nem faziam parte da história, mas sim das notas do tradutor, o brilhante Mamede Mustafa Jarouche. Explico: o próprio tradutor do livro avisa, em diversos momentos, que aquela história ali ou aquele poema não está fazendo muito sentido, não só pela dificuldade de verter certas expressões do árabe para o português, mas também pela própria origem do material original que é meio precária, fragmentada, incerta etc.
A boa notícia é que conforme as histórias avançam, a coisa toda vai ficando mais inteligível e divertida. Em geral, as narrativas são sobre amores proibidos e tretas familiares. Há alguns elementos fantásticos, incluindo uma trama envolvendo um universo aquático que creio ter sido a que inspirou o conto A Pequena Sereia, escrita pelo supracitado Hans Christian Andersen dez séculos depois. Boa parte das tramas se movimenta a partir de jovens apaixonados fazendo cagadas e se envolvendo em inúmeras intrigas palacianas.
Há até uma pegada meio Cinquenta Tons de Mil e Uma Noites em alguns momentos, com trechos que poderiam muito bem figurar num Cine Privê literário: “pegou-a pelas pernas e ergueu-as até a sua cintura, enquanto ela lhe enlaçava o pescoço com as mãos e o recebia com beijos intensos e lascivos. Imediatamente ele rasgou pela cintura as roupas que ela trajava e a deflorou”. Tudo isso ocorre uns 30 segundos depois de o casal se conhecer, o que mostra que o pessoal do século IX era bem moderninho. E eles eram meio engraçados também, pois, após ser flagrada cometendo este delito (ela nem poderia chegar perto do rapaz), a jovem tenta minimizar a situação dizendo: “Foram três estocadas e nada mais”.
Outro aspecto engraçado e involuntário é a inserção de poesias a todo momento no meio da narrativa. Os poemas em si não são engraçados, na verdade são até meio herméticos, mas é que eles aparecem em situações muito inusitadas, como quando um mensageiro vem avisar ao príncipe que ele precisa sair dali rápido senão será esquartejada pela guarda real e, em vez de vazar imediatamente, ele recita um poeminha enquanto a galera espera. Isso também ocorre no meio de bate-boca de casal, espancamentos etc.
No entanto, alguns elementos não são engraçados e nem tão modernos assim e evidenciam que estamos diante de uma obra que é um fruto de seu tempo, como por exemplo a forma como as personagens femininas são retratadas. Mesmo que Sherazade represente a mulher inteligente que engana um homem todas as noites, salvando assim muita gente, ainda temos histórias contadas supostamente pelo ponto de vista feminino em que as mulheres são meros adereços, que pouco contribuem para a composição do enredo. Boa parte das personagens é escrava ou tratada como tal e servem apenas como objeto de desejo de homens ambiciosos ou apaixonados. Não que isso seja um problema do livro, pois trata-se não apenas do reflexo de um tipo de pensamento, mas também de reprodução de um comportamento comum à época.
É interessante perceber a recorrência de situações em que uma mulher se fantasia de homem para enfim poder fazer parte da história, pois aparentemente esta é única forma de ela ser vista sem ser como um objeto sexual. Essa troca de roupas (e, por conseguinte, de gênero) ocorre algumas vezes e me fez pensar que talvez Guimarães Rosa tenha dado uma boa lida nessas narrativas antes de escrever “Grande Sertão: Veredas”.
O estilo da prosa também é bastante marcante, pois destoa consideravelmente daquilo que acostumados a ler na literatura mais recente. Os personagens estão sempre num tom acima daquilo que suporíamos ser o normal, tipo novela mexicana, então eles sofrem de uma maneira não muito discreta, como por exemplo: “Ao ouvir tais palavras da esposa, o vizir caiu sem forças, estapeou-se nas faces até sangrar pelo nariz, pôs a mão na barba e a arrancou, retirando tufos com os dedos”. Intenso, né? E nem morreu ninguém, foi só porque o filho pegou uma guria que não deveria.
O livro também é repleto de violência gratuita no melhor estilo Tarantino. Se algum playboy mimado recebe, em seu palácio, uma notícia que não gostaria, ele trata de meter uma espada no pescoço do coitado do mensageiro. Inclusive creio que este seja o livro com o maior número de pessoas decapitadas por metro quadrado de página, pois são centenas. Fora isso é bastante comum o leitor se deparar com trechos como “O vizir caiu de cabeça, e o rapaz começou a lhe desferir coices e pontapés no pescoço até deixá-lo atordoado”. No pescoço (?!), meu Deus.
Enfim, o livro das Mil e Uma Noites é curioso não só pela façanha de ir encadeando diversas histórias fantásticas num ritmo meio frenético, mas também pelas suas esquisitices. É o tipo de leitura que pode fugir muito daquilo que nos é familiar, o que no fim das contas é fascinante.
Eder Alex é formado em Letras. Professor de comunicação e literatura.
SOBRE O LIVRO
Título: Livro das Mil e Uma Noites – Volume 2
Autor: Vários autores
Tradução: Mamede Mustafa Jarouche
Editora: Biblioteca Azul
Páginas: 400
Compre o livro/e-book
SINOPSE – Primeira tradução integral e direta do árabe para o português, o “Livro das mil e uma noites” retorna às livrarias com novo projeto gráfico, numa edição revista e atualizada pelo tradutor Mamede Mustafa Jarouche. Vencedor dos prêmios APCA, Paulo Rónai e Jabuti de melhor tradução, o “Livro das mil e uma noites” é uma obra universal que atravessou séculos fazendo parte da cultura do Oriente e do Ocidente. Mais do que um rico repertório de narrativas fantásticas, é também uma homenagem à mulher e um reconhecimento de sua inteligência. Sua heroína, a narradora Šahräzäd, é um símbolo da infinita capacidade feminina de contornar situações críticas e de salvar o mundo da ruína.
Ana Paula Laux é jornalista e trabalha com curadoria de informação, gestão de mídias sociais e criação de conteúdo digital. Em 2014, lançou o e-book “Os Maiores Detetives do Mundo” (Chris Lauxx). Contato: [email protected]
Republicou isso em Memórias ao Vento.