Por Josué de Oliveira – Dentro da literatura do crime, Dennis Lehane já fez um pouco de tudo. Os primeiros livros do escritor e roteirista, lançados nos anos 1990, formam a elogiada série protagonizada pelos detetives particulares Patrick Kenzie e Angela Gennaro – Um drink antes da guerra, Apelo às trevas, Sagrado, Gone baby gone, Dança da Chuva e Estrada Escura –, histórias inseridas na tradição hardboiled norte americana, mistérios urbanos cheios de corrupção, violência e humor cortante. Depois disso, uma dupla de suspenses psicológicos: Sobre Meninos e Lobos e Paciente 67, cujas adaptações cinematográficas – dirigidas por Eastwood e Martin Scorsese, respectivamente – lhe trouxeram ainda mais notoriedade. Somam-se a estes uma trilogia de romances históricos, Naquele Dia, Os Filhos da Noite e World Gone By – este último ainda sem tradução para o português –, onde os irmãos Coughlin circulam entre policiais, gângsters e contrabandistas. Completam a bibliografia o curto A Entrega, sobre um bartender às voltas com o crime em seu bairro, e o volume de contos Coronado.
Essas obras revelam um autor capaz de transitar com segurança entre diversas abordagens possíveis do romance policial. Seus inusitados personagens incluem criminosos cativantes, membros da classe trabalhadora diante de dilemas morais insolúveis, homens e mulheres da lei paralisados frente à loucura do mundo – a lista é longa. Lehane os leva ao limite, obrigando-os a dar uma boa olhada no que têm dentro de si e vislumbrar quem verdadeiramente são, algo que só pode ser alcançado em meio ao fogo da provação. E o melhor: essas jornadas acontecem em meio a tramas das mais envolventes e imprevisíveis.
Depois da Queda (Companhia das letras), seu livro mais recente, acaba de chegar ao Brasil. E mais uma vez vemos Lehane tomar uma direção inesperada, experimentando terreno novo – e obtendo mais um acerto.
Logo nas primeiras páginas, um assassinato: Rachel Childs atira no peito de seu marido. A partir daí, voltamos ao passado e a acompanhamos desde a infância. Filha de uma escritora de autoajuda que lhe nega o direito de saber quem é seu pai, Rachel vem a se tornar uma jornalista bem-sucedida, até um incidente que interrompe sua carreira: durante uma transmissão ao vivo do Haiti, ela sofre um ataque de pânico. Segue-se um período de isolamento, onde sinais de agorafobia começam a se manifestar. A melhora vem a partir do reencontro com Brian, um homem atraente e carinhoso, e a conexão é imediata. O relacionamento evolui para um casamento feliz. Mas, justo quando Rachel percebe os sinais de recuperação psicológica, o avistamento de uma pessoa nas ruas de Boston engatilha uma série de acontecimentos que põem em dúvida tudo que ela acredita sobre si mesma, Brian e a vida que construíram juntos.
Não temos aqui uma história em primeira pessoa, uma protagonista que esconde algum terrível segredo, variação no ponto de vista para revelar desencontros no relato dos acontecimentos, convenções tão presentes nos policiais mais recentes. O que Lehane toma deles é a primazia da perspectiva feminina – o ponto de vista jamais se descola de Rachel – e a atmosfera de desconfiança em relação àquilo que temos de mais sólido em nossas vidas. A partir desses ingredientes, o autor apresenta uma narrativa que dialoga com a produção contemporânea, mas se destaca pelas escolhas incomuns de condução.
A primeira delas é o recuo no tempo e toda a primeira parte do livro dedicada à vida de Rachel antes dos acontecimentos descritos na sinopse. Nesse longo trecho, a principal preocupação do autor não é suspense ou tensão, mas sim nos mostrar quem é essa mulher, como surgem seus traumas, como a obsessão com a identidade do pai se instala. Só mais tarde o enredo começa a tomar os rumos mais esperados num thriller. Isso nos informa que Depois da Queda, antes de mais nada, é sobre Rachel, sua busca por sentido num mundo que se mostra cada vez mais caótico, opressivo, arbitrariamente caprichoso. Ao desenvolver a protagonista, Lehane mostra sua notória habilidade com personagens complexos e desajustados, pessoas que se percebem incompletas e nem sempre sabem onde procurar a parte que está faltando.
Da mesma maneira que a progressão de Depois da Queda para o romance policial que esperamos se dá aos poucos, os temas trabalhados pelo autor também vão se mostrando de modo gradual. O principal deles, antevisto logo no prólogo, não podia ser mais clichê: trata-se do amor. Lehane escolhe suas facetas mais ambíguas como objeto de exame, explorando as atitudes absurdas, por vezes cruéis, cometidas em seu nome. O amor motiva atos nobres e altruístas, nos faz colocar nossos próprios interesses em segundo plano em detrimento do bem-estar de outra pessoa, mas também tem o potencial de destruir vidas. A vida que o amor de alguém nos fez abandonar, ou aquela que teríamos caso jamais fôssemos acometidos deste sentimento, essa ligação a outro alguém. Os personagens vão entendendo que, para além do romantismo, as consequências de amar podem ser devastadoras, incontornáveis.
Outro tema importante, quase uma obsessão de Lehane, aparecendo na maioria de suas obras, é a monstruosidade humana. O mundo é povoado por monstros, criaturas para quem a existência de seus semelhantes vale pouco ou nada, capazes de dormir tranquilamente à noite sem serem atormentados pela extensão de sua maldade. Rachel depara com eles na desolação do Haiti, onde grupos armados circulam pelas cabanas de sobreviventes do furacão Matthew em busca de mulheres para satisfazer seus desejos sexuais, e também na segurança de Boston, quando eles vêm em seu encalço. Não os mesmos, é claro; outros homens – sempre homens –, outros rostos, mas a mesma indiferença, o mesmo impulso predador. Os personagens de Lehane são modificados pelo encontro com estes seres, e é fascinante notar que até mesmo a eles o autor confere toques de humanidade, como na confrontação que ocorre nas últimas páginas. E oferece uma reflexão nem um pouco tranquilizadora: na maioria das vezes, os monstros sequer têm consciência da própria natureza.
O mistério vai se instalando num crescendo a partir de um encontro aleatório na rua, e daí em diante o enredo vai tomando rumos cada vez mais insólitos, com direito a paranoia, sequências de ação, boas reviravoltas e corrida contra o tempo. É quando Lehane mostra que entende e muito dos aspectos mais convencionais do gênero que escreve há tantos anos e sabe como manter o leitor preso à história. As revelações que atingem Rachel jamais respondem a todas as perguntas e levantam outras tantas, gerando mais e mais desconfiança e tornando o desfecho sempre mais imprevisível. Contribui para isso o fato de o ponto de vista permanecer fixo na protagonista, de modo que seu desnorteamento está sempre em primeiro plano. O leitor é colocado num estado de confusão semelhante ao dela própria, já que a quantidade de informações de que dispomos é exatamente a mesma que Rachel.
Porém, há problemas a serem citados. Mesmo criando uma trama criativa e engenhosa, não há como negar que Lehane comete certos excessos, sobretudo no terceiro ato. Algumas passagens se estendem mais do que o necessário, enquanto outras mereciam maior elaboração. E há um trecho em específico em que o autor testa a fé do leitor com uma das viradas mais inverossímeis de sua carreira. Não são falhas que comprometem o todo, mas cabe apontar que estão lá.
A própria “demora” para o engrenar da trama pode ser um ponto que traga algum desagrado, assim como a aparente desconexão entre a primeira parte, dedicada de todo ao desenvolvimento pessoal da protagonista, e as duas seguintes. A resposta para essas duas possíveis queixas me parece ser um só, e já foi apontada aqui: Depois da Queda é, da primeira à última linha, sobre Rachel Childs, seu esforço para vencer o sentimento de incompletude que a domina desde a infância e definir os significados da própria vida. Lehane foi consistente dentro dessa proposta – e, se no processo alguns dos protocolos consagrados da narrativa policial foram sacrificados, a compensação vem na forma de uma de suas personagens mais interessantes e multifacetadas.
Apesar dos pequenos tropeços, Dennis Lehane demonstra com seu novo romance por que é um dos autores contemporâneos mais elogiados da literatura policial.
Autor: Dennis Lehane
Páginas: 392
Editora: Companhia das Letras
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SINOPSE – Depois de ter um colapso mental ao vivo, durante uma transmissão de TV, Rachel Child, antes uma jornalista obstinada e que desbravava o mundo, passa a viver totalmente reclusa. Fora isso, porém, ela leva uma vida ideal, com um marido que parece ideal. Até que, numa tarde chuvosa, um encontro fortuito abala profundamente aquela vida perfeita, assim como seu casamento e ela mesma. Sugada por uma conspiração cheia de decepções, violência e loucura, Rachel precisa encontrar forças nela mesma para superar medos inimagináveis e verdades transformadoras. Emocionante, sofisticado, romântico e cheio de suspense e tensões, Depois da queda é Dennis Lehane em sua melhor forma.
Formado em Estudos de Mídia pela UFF e vive em Niterói, RJ. Trabalha na área de desenvolvimento de livros digitais. Gosta de ler, escrever, ver filmes esquisitos e curte bandas que ninguém conhece. Atualmente, revisa seu primeiro romance policial.
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Excelente crítica. De fato, parecem dois livros distintos, quando se tomam a primeira e as duas últimas partes. Não fosse a cena de abertura (além da sinopse), com a Rachel alvejando o marido, o leitor poderia achar tratar-se de um romance ou um drama e desistir do livro antes que este se revele verdadeiramente um "thriller". Fosse um livro do Harlan Coben, a reviravolta que acontece na metade do livro teria lugar logo na abertura. Mas o Lehane não tem pressa pra instaurar um conflito na história, adotando uma abordagem mais "biográfica" da protagonista. Não que isso seja um problema de todo: a forma como ele escreve e a história de Rachel são interessantes por si só para manter o interesse do leitor, salvo se este estiver unicamente interessado em um thriller ágil desde as primeiras páginas.
Acho que é isso mesmo o que faz o livro se destacar: o quanto ele se nega a se encaixar em moldes. Me parece que o Lehane não tem mais muito saco para ser um autor de gênero, como foi durante muitos anos (o que não é problema, de forma alguma) e quer mesmo é escrever do jeito que quiser.
Por mim, ótimo. :D
Abração, Leandro.
adorei a crítica. Sem dúvida, Dennis Lehane é um dos melhores da atualidade. Já li todos, e estou aguardando a boa vontade da Companhia das Letras lançar World Gone By, mas parece que desistiram. Um completo absurdo e desrespeito, se for essa a decisão mesmo.