POR RAUL SOUSA – Eu sempre gostei de literatura policial e durante meu ensino médio procurei ler Agatha Christie, Arthur Conan Doyle, Georges Simenon e Raymond Chandler. Conheci, por acaso, um jogo Phoenix Wright que era bastante baseado em histórias de detetive. Muitos anos depois entendi que os jogos eram uma das inúmeras críticas ao poder judiciário japonês. Creio que foi naquela época que me perguntei o que será que os japoneses liam de literatura policial, mas não sabia por onde começar minha investigação e por isso deixei a questão de lado.
As coisas mudaram de figura quando entrei em uma série de grupos do Facebook focados exclusivamente em literatura policial. Um deles, Golden Age Detection, expandiu completamente meus horizontes. Percebi que nós, leitores, só vemos a pontinha do iceberg chamado Era de Ouro da Literatura Policial. Fui introduzido a uma enxurrada de escritores internacionais de todos os cantos do mundo. Essa torrente de informações somada com as centenas de episódios do anime Detective Conan me fizeram conseguir mais informações sobre a literatura policial japonesa.
Edogawa Rampō é um dos primeiros nomes que você vai encontrar se fizer alguma pesquisa no Google. O próprio pseudônimo adotado pelo protagonista de Detective Conan usa o sobrenome Edogawa. Sua importância para a literatura policial japonesa é enorme por ter sido a pessoa que organizou as coisas e preparou o terreno. Ele foi o responsável por publicar diversos escritores, por dar cartas de recomendação e até mesmo a criar o Mystery Writers of Japan. Suas atividades foram além do Japão e é documentado que trocou correspondência com Ellery Queen.
Foi durante o período de atividade de Rampō que surgiu o termo “honkaku”. Esse termo foi cunhado e definido pelo escritor Kōga Saburō, significando “Uma história de detetive que valoriza o entretenimento derivado do puro raciocínio lógico”. O honkaku não se refere apenas aos romances produzidos no Japão, mas vai além. “The Borderline Case”, escrito por Margery Allingham, ou “Whose Body?”, escrito por Dorothy L. Sayers, também são considerados parte do que se entende por honkaku. O problema começou a acontecer quando o Japão entrou na Guerra Sino- Japonesa e depois na Segunda Guerra Mundial.
A aversão às produções estrangeiras e influenciadas pelo estrangeiro tomaram conta do país, culminando com uma onda de censura. A medida afetou drasticamente os autores de mistério e muitos trocaram de profissão, como Ōsaka Keikichi. Essa censura atrasou os planos do jovem Yokomizo Seishi em publicar sua primeira história, “Honjin Satsujin Jiken”. A derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial estranhamente favoreceu os autores do gênero. A presença americana em solo japonês permitiu que os autores pudessem voltar a publicar suas histórias de detetives. Takagi Akimitsu surge nesse período, recomendado por Edogawa Rampō, com o romance “Shisei Satsujin Jiken” e até tornou-se membro do Mystery Writers of America.
O estilo conhecido como honkaku, porém, passaria por outro baque orquestrado por uma nova leva de escritores. Matsumoto Seichō falava abertamente que se opunha ao estilo criado pelos autores que vieram antes dele por causa do irrealismo das tramas. O obituário de Matsumoto no The Independent menciona Raymond Chandler e é impossível não lembrar da figura controversa da literatura policial americana. Ambos autores não achavam interessantes as histórias dos estilos que os antecederam por acreditar que não eram realistas. Esse movimento japonês é conhecido como escola social.
A hegemonia da escola social perdurou por trinta anos, entre os anos cinquenta até meados dos anos oitenta. Seus representantes procuravam esmiuçar o trabalho investigativo da polícia, desmontava a figura do detetive extremamente cerebral e também mostrava questões relacionadas com a corrupção do próprio ser humano. O próprio Matsumoto afirmou, durante visita de Frederic Dannay (Ellery Queen), que o elemento mais importante de uma história de detetive é o motivo que leva o criminoso a agir, sempre apegado ao psicológico. Esse reflexo apareceu inclusive no cinema japonês, especialmente com “Tengoku to Jigoku”, dirigido por Kurosawa e baseado no romance “King’s Ransom” de Ed McBain. Outro filme marcante do período é “Suna no Utsuwa”, baseado no livro de mesmo nome de Matsumoto. Uma outra escritora conhecida desse período é Masako Togawa.
Só que um jovem escritor chamado Shimada Sōji ameaçou essa estrutura quando lançou o livro “Senseijutsu Satsujin Jiken”, chegando a ser um dos finalistas do Edogawa Rampō Awards. Conversando com Shimada-sensei é possível perceber que S. S. Van Dine influenciou profundamente a sua obra. Ele percebeu que era possível trazer o honkaku para os dias atuais, criando crimes complexos e truques que deixariam Sherlock de cabelos em pé. Shimada-sensei passou a viajar para Quioto para auxiliar um grupo de estudantes que queria publicar seus primeiros romances apoiados no honkaku. Ayatsuji Yukito, um dos grandes nomes dessa renovação, praticamente começa o livro “Jūkakukan no Satsujin” com um dos personagens falando:
Esse era o pensamento dos jovens escritores do período. Yukito não esteve sozinho: Abiko Takemaru publicou “8 no Satsujin”, Arisugawa Alice publicou “Gekko Gemu”, Yamaguchi Masaya publicou “Ikeru Shikabane no Shi”, Ashibe Taku publicou “Satsujin Kigeki no Jūsan-nin” e diversos outros escritores foram publicando com o passar dos anos. O honkaku passou a ter nova força e esse segundo período é conhecido como “shin honkaku” (novo ortodoxo). Esses jovens escritores, durante os anos 2000 criaram o Honkaku Mystery Writers.
Devemos olhar a literatura policial japonesa por alguns motivos. Primeiro que os japoneses provam que o realismo na literatura policial não é realmente algo necessário. John Dickson Carr, ao rebater “A Simples Arte de Matar”, escreve que qualquer coisa é real se ela parecer real. O shin honkaku leva essa ideia ao limite. Yamaguchi-sensei criou um caso onde a pessoa que investiga o assassinato é a própria vítima, Kyōgoku Natsuhiko escreveu um romance policial que acontece no futuro com lobisomens. A segunda é que mesmo nesse ambiente de irrealismo tais autores estão chamando a atenção dos leitores no Ocidente, especialmente nos Estados Unidos e na Inglaterra. Deixo uma pequena lista de escritores do honkaku que foram publicados em inglês:
1) The Tokyo Zodiac Murders – Shimada Sōji (2001 e 2015)
2) Loups Garous – Kyōgoku Natsuhiko (2010)
3) The Fiend With Twenty Faces – Edogawa Rampō (2012)
4) The Early Cases of Akechi Kogoro – Edogawa Rampō (2014)
5) The Decagon House Murders (2015 e 2021)
6) The Moai Island Puzzle – Arisugawa Alice (2016)
7) The Ginza Ghost – Ōsaka Keikichi (2017)
8) The 8 Mansion Murders – Abiko Takemaru (2018)
9) Gold Mask – Edogawa Rampō (2019)
10) Murder in the Crooked House – Shimada Sōji (2019)
11) Murder in the Red Chamber – Ashibe Taku (2019)
12) The Red Locked Room – Ayukawa Tetsuya (2020)
13) The Honjin Murders – Yokomizo Seishi (2020)
14) The Inugami Curse – Yokomizo Seishi (2020)
15) The Village of Eight Murders – Yokomizo Seishi (2021)
Seishi Yokomizo já foi publicado em espanhol, italiano e francês antes. Provavelmente veremos “Gokumon-tō” sendo lançado em 2022. É possível perceber que os autores japoneses atraíram a atenção das editoras ocidentais. Eu poderia citar mais uma dúzia de contos que apareceram em revistas de literatura policial ou em antologias. O estilo que Agatha Christie escreveu continua vivo e muito bem no exterior. Muitos autores que eu mencionei no texto foram fãs de Agatha Christie. A literatura policial japonesa é a continuação do legado da Era de Ouro.
[Imagem: Raul Sousa]
Jornalista. Trabalha com curadoria de informação, gestão de mídias sociais e criação de conteúdo digital. Em 2014, lançou o e-book “Os Maiores Detetives do Mundo” (Chris Lauxx). Contato: [email protected]
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