Me lembro de quando era criança e, ainda sem conhecer e ser absorvido pelo advento da tecnologia, brincava com meus amiguinhos e primos de polícia e ladrão. A brincadeira era basicamente o duelo entre duas equipes – os policiais e os ladrões – por meio de esconderijos, armas fictícias e efeitos sonoros gerados por nós mesmos. Crescido, ganhei meu primeiro computador e passei a me dedicar aos jogos de tiro, de estratégia e outros mais. Estávamos ali, cumprindo missões, atirando nos vilões, explodindo coisas e salvando vítimas inocentes.
Sob um olhar psicológico, ao jogarmos ou brincarmos, estamos desempenhando papéis. Saímos por um momento do papel de criança e nos tornamos heróis, detetives, donos de um império, comandantes de guerra e até bandidos profissionais. Simulamos uma realidade coletiva e nos divertimos sendo personagens que talvez nunca existiram ou nunca existirão.
Na leitura que fizemos quando crianças e à qual tanto nos dedicamos como adultos, o desempenho de papéis não é diferente. Diariamente assumo meus papéis de psicólogo, filho, namorado, motorista, vizinho, etc., mas não acho que seja suficiente. Posso querer ser um astronauta às vezes, ou melhor, um detetive.
Vou explicar o que isso tem a ver com literatura policial. Comecei a ler romances policiais com Georges Simenon e Raymond Chandler, gênios criadores de dois detetives marcantes e opostos, Jules Maigret e Philip Marlowe. Atualmente me esbaldo com Diomedes, o detetive particular ‘fraude’ de Lourenço Mutarelli.
Confesso que diversas vezes me vi em Paris acompanhando uma investigação, andando por becos mal iluminados e participando de interrogatórios intermináveis ao lado de Maigret e seus inspetores. Pensei como Maigret e assumi o seu lugar por horas, dias, semanas. Fui também canastrão como Marlowe e joguei sujo com os tiras e outros que se colocaram no meu caminho em Los Angeles.
Quando lemos nos transportamos para outra realidade e desempenhamos os papéis dos protagonistas e coadjuvantes de nossos romances. Somos público e ator ao mesmo tempo. Sou eu o protagonista que investigo e desvendo o crime. Deixamos de ser nós mesmos por alguns instantes. Não será por este motivo a leitura tão fascinante?
Inúmeras pesquisas já comprovaram que a leitura estimula nossa inteligência e o pensamento, colaborando com nossa habilidade de compreender textos, articular ideias, nos comunicar e desenvolver nossas funções cognitivas. Mas qual será então o motivo de elegermos sempre os detetives ou os bandidos como os papéis de nossa preferência, amantes da literatura policial que somos? Em um texto anterior, me questionei porque nos interessamos por crimes, mas vou além. Não queremos apenas saber sobre eles, queremos fazer parte, estar na pele das vítimas, dos investigadores, dos vilões.
É da nossa natureza querer desempenhar papéis variados e nos sentimos estranhamente estimulados quando temos essa oportunidade. Em outras palavras, é natural nosso apreço por mudanças e novidades, experiências diferentes, que coloquem nossa personalidade à prova. Quando desempenhamos papéis por meio da leitura vivenciamos também as emoções do protagonista, sentimos raiva, tristeza, alegria e medo. Por meio da leitura nos realizamos, como se alguém estivesse fazendo justiça por nós e tudo que precisamos é torcer pelo seu sucesso.
Resta-nos brindar e oferecer um cachimbo aos mestres da literatura policial e seus seguidores. Vivamos um pouco mais através deles – nossos heróis -, graças aos seus criadores, seres humanos sedentos por novos papéis, histórias e mistérios.
(Imagem: Nick Walton/Flickr)
Psicólogo, mestre e doutorando em Psicologia. Atua no sistema prisional. É músico e leitor assíduo de romances policiais, com aquele lugar especial no coração para Georges Simenon e Raymond Chandler.
Beleza, beleza mesmo! O difícil de explicar é porque buscamos determinados caminhos. Em vez de policial, poderia ter sido outro gênero narrativo. Boileau e Narcejac acreditam que a ideologia do romance policial tem, em sua raiz, o medo, a desdita do nosso destino final. Quando eu brincava de mocinho e bandido, e já se foram mais de 70 anos, o primeiro era sempre o vencedor – o mal não podia vencer, seria um desastre para nossa existência.
Grato pelo pequeno ensaio.
Ivan G. Maia
PS: gostaria de enviar-lhes dois livros. Poderiam me fornecer um endereço direcionado para o meu e-mail.
Obrigado pelas palavras Ivan! Sobre o endereço e o e-mail deixo com a Ana Paula. Abs
Oi Ivan!
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