Por Josué de Oliveira – Talvez você nunca tenha ouvido o termo domestic noir, mas, se costuma acompanhar os lançamentos de romances policiais no Brasil, já deve ter passado os olhos por diversos exemplares desse subgênero. Pelo menos desde o lançamento de Garota Exemplar, pode ser observado um interesse crescente em histórias de mistério de teor mais psicológico, geralmente tendo como foco o ambiente familiar e a vida a dois.
Cônjuges com segredos a esconder um do outro, filhos desaparecidos, traumas e tensões do casamento são alguns dos temas mais abordados. Além de Garota Exemplar, também podemos destacar A Garota no Trem como um expoente recente dessa tendência. No ano passado, o autor Raphael Montes escreveu sobre o assunto para o Globo.
Um recente exemplar desse “noir doméstico” é As Gêmeas do Gelo (Bertrand Brasil, 361 páginas), de S.K. Tremayne, pseudônimo do jornalista inglês Sean Thomas. No livro, acompanhamos Sarah e Angus Moorcroft, que, após cerca de nove anos de casamento, perdem uma de suas filhas gêmeas, Lydia, que caiu da varanda da casa dos avós, pais de Sarah.
A situação se agrava quando, meses depois, Angus é demitido, e se torna cada vez mais difícil manter a casa onde vivem, num típico subúrbio londrino. A solução passa a ser uma propriedade herdada por Angus na região das Hébridas, na Escócia, uma antiga casa numa ilha de maré. Os dois decidem se mudar para lá, em busca de um lugar de recomeço para lidar com a dor.
Antes da mudança, porém, a gêmea sobrevivente, Kirstie, faz uma afirmação perturbadora: ela diz ser, na verdade, Lydia, a irmã tida como morta. E assim se inicia o pesadelo de Sarah: é possível que tenham cometido um erro dessas proporções, confundindo uma filha com a outra? O que realmente aconteceu no dia do acidente? E será que Angus, com seu comportamento cada vez mais distante, esconde alguma coisa?
Vemos boa parte dos acontecimentos pelos olhos de Sarah, que desde o início se mostra uma pessoa um tanto calada, com a tendência de guardar os sentimentos e desconfianças para si. Acompanhamos seu luto, a tristeza que vem guardando desde a perda de uma das filhas, e ainda no primeiro capítulo vemos ser plantada a semente da dúvida sobre a identidade da gêmea que ainda vive. O autor é hábil em retratar a confusão que lentamente toma conta da narradora, como pouco a pouco sua mente vai sendo contaminada pela perturbadora possibilidade de ter enterrado a filha errada. Essa sensação de estranhamento é essencial para que o leitor se sinta compelido a prosseguir na leitura, e Tremayne cria desde o início um mistério instigante por sua aparência de absurdo.
O autor também acerta na administração do suspense: ao final de cada capítulo há algum acontecimento ou revelação importante, mantendo a história fluindo e criando um forte senso de antecipação. Contribuem para isso as mudanças de ponto de vista, indo de Sarah, que narra tudo em primeira pessoa, para Angus, com seu ponto de vista mostrado em terceira, sempre em momentos oportunos. Tremayne maneja bem ambas as perspectivas, explorando os sentimentos por vezes contraditórios e cada vez mais negativos de ambos.
A ambientação é outro elemento importante em As Gêmeas do Gelo: apesar do lugar comum do casal-que-se-muda-para-uma-casa-remota-para-superar-seus-traumas (bastante comum em filmes de terror), Tremayne faz bom uso do cenário ao mesmo paradisíaco e ameaçador onde boa parte da trama se dá. A casa rodeada de lodaçais, as tempestades repentinas e o isolamento do resto do mundo são metáforas interessantes para o estado de espírito dos próprios personagens, como, cada vez mais, eles estão imersos em seus próprios dramas.
A trama tem uma resolução satisfatória, ainda que o autor se valha de um clichê que fará os mais versados em livros de mistério antever o final após certa altura. Além disso, Tremayne de certa forma abre mão da complexidade que vinha cultivando até então no desenvolvimento dos personagens (mostrados sempre como criaturas ambíguas, contraditórias) ao oferecer uma revelação final um tanto preto no branco. A exploração da psiqué dos personagens, nesse momento, é ligeiramente deixada de lado em detrimento da resolução da trama — o que não significa que o fechamento não seja bem amarrado .
As Gêmeas do Gelo é um bom livro sobre perda, desconfiança e as armadilhas que nossa própria mente constrói para nós. Uma boa pedida para quem curte thrillers psicológicos e tramas ágeis. O noir está cada vez mais doméstico.
SOBRE O LIVRO
Título: As Gêmeas do Gelo
Autor: S.K Tremayne
Páginas: 362
Ano: 2016
Editora: Bertrand Brasil
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SINOPSE – Um ano depois de Lydia, uma de suas filhas gêmeas idênticas, morrer em um acidente, Angus e Sarah Moorcroft se mudam para a pequena ilha escocesa que Angus herdou da avó, na esperança de conseguirem juntar os pedaços de suas vidas destroçadas. Mas quando sua filha sobrevivente, Kirstie, afirma que eles estão confundindo a sua identidade — que ela é, na verdade, Lydia — o mundo deles desaba mais uma vez. Quando uma violenta tempestade deixa Sarah e Kirstie (ou será Lydia?) confinadas naquela ilha, a mãe é torturada pelo passado — o que realmente aconteceu naquele dia fatídico, em que uma de suas filhas morreu?’
Formado em Estudos de Mídia pela UFF e vive em Niterói, RJ. Trabalha na área de desenvolvimento de livros digitais. Gosta de ler, escrever, ver filmes esquisitos e curte bandas que ninguém conhece. Atualmente, revisa seu primeiro romance policial.
Muito bom.
Valeu Ivan! 😀
Recebi esse livro no Mochilão Record e foi uma feliz surpresa! Nunca compraria pelo título ou capa, mas a história é muito rica! Também fiz resenha, porque realmente merece ser divulgado!
Pois é, eu também passaria por ele numa livraria se olhasse só para a capa. Mas a sinopse sozinha já pesca a atenção, causa um estranhamento, e o autor joga bem com isso. 🙂