Remorso e nostalgia marcam “Um legado de espiões”, de John Le Carré

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Por Rogério Christofoletti – O mais apressado de nós poderá dizer que escrever livros de espionagem durante a Guerra Fria era fácil, já que o mundo polarizado funcionava como playground para esses esguios personagens. Com o fim dessa era, todos poderiam muito bem ser encaminhados à fila da aposentadoria e ponto final. Não é bem o que pensa John Le Carré, uma lenda desse tipo de literatura que, aos 86 anos, lança Um Legado de Espiões (Editora Record), livro que traz lufadas revigorantes ao tema.

Outro de nós poderia pensar que os espiões de hoje são criaturas high-tech, enfurnadas em gabinetes assépticos da NSA ou do GCHQ, monitorando massivamente cidadãos e não só Edward Snowden e Julian Assange. Le Carré desvia fácil dessas balas e volta à carga com o universo que o fez estourar em 1963 com O espião que saiu do frio, onde o planeta está coalhado dessas criaturas ambíguas que trabalham para governos com interesses pendulares e confusos. Quer dizer, ainda há razões para que os espiões abram seus arquivos e para que essas histórias secretas venham à tona. Um legado de espiões é uma nítida comprovação dessa ideia.

 

“É importante ter em mente que o mundo da espionagem depende fundamentalmente de uma amarga sensação: a desconfiança. Em nome dela, pessoas são vigiadas, conspirações são tecidas, alianças são feitas e traições, cometidas.”

 

Se antes não era possível confiar numa nação vizinha, em Um legado de espiões nem mesmo o próprio serviço secreto inglês confia piamente em seus agentes. Por isso, um velho espião é chamado de volta a Londres para contar o que sabe de uma operação secreta de 1959 que não deu tanto certo como se esperava. Velho e esquecido, Peter Guillam deixa sua fazenda tranquila na Bretanha, no oeste francês, para remexer nas empoeiradas memórias aventureiras. Na tal Operação Windfall, duas pessoas morreram: um agente amigo e sua apaixonada garota. Guillam não gostou nada do resultado, nem seu superior e mentor, o mítico George Smiley, o maior personagem já criado por Le Carré.

O mundo não é mais como era na Guerra Fria, mas o passado é uma sombra. Já tentou se livrar da sua? Pois é. Guillam está oficialmente aposentado, o que nos leva a pensar que suas lembranças estão definitivamente enterradas. Nada. Remorso, nostalgia e o sentido da história cobram impostos pesados de todos. Quem suja as mãos de sangue paga a mais…

A exemplo de outros tantos livros de Le Carré, o leitor é transportado para uma atmosfera de pistas erradas, falsos testemunhos, ambiguidades de caráter e estratégias diversas para desviar a atenção. O propósito do escritor – e de seus homens ocultos – é despistar, fazer com que o leitor erre o caminho. Como fantasmas impertinentes, voltam do túmulo os agentes violentos da Stasi – a polícia secreta da Alemanha Oriental -, infiltrações de russos da KGB, e cenários de emboscadas em Praga e Berlim, por exemplo. Também fazem parte do cardápio um conjunto robusto de risco de morte, infiltração, deserção e contra-inteligência.

Mas que o leitor não se engane: um legado de espiões não é uma história de ação, de perseguições alucinantes e movimentos bruscos. Há reviravoltas, crime, mistério e suspense, mas nada de muito agitado. As peças se movem em modo furtivo no tabuleiro intrincado de Le Carré. Lembre-se: os espiões do autor não são os de Ian Fleming. George Smiley é um perfeito contraponto a James Bond. Não é bonito, nem carismático, está acima do peso, tem um olhar triste, usa óculos de aros grossos e sua mulher o trai insistentemente. Apesar disso, é um agente como nenhum dentro do Circus, como é chamado o MI6 nas internas.

Um legado de espiões é um livro cerebral, analítico e com um humor refinado e inteligente. Cada frase vale quanto pesa, não há sobras ou gorduras. E seu autor, caprichosamente, deposita pistas em uma piada aqui ou em outro cinismo ali.

Peter Guillam é um protagonista de personalidade fascinante, um autêntico herói-cebola. A cada página, o leitor espreita uma camada de seus segredos. A cada capítulo, passado e presente se enlaçam e dão uma gravidade humana inédita em romances de espionagem. O que resta fazer do passado se não revivê-lo? Emerge uma melancolia genuína e a consciência do peso e da consequência de certas decisões na vida. Danos colaterais são aceitáveis nas operações dos espiões, mas como se convive com aqueles erros que mais nos machucam? Le Carré nos mostra que até os agentes mais frios e calculistas são preenchidos de sentimentos recalcados. O passado é aquele lenço surrado que descobrimos numa calça abandonada: à medida que vamos desdobrando, descobrimos não só os seus vincos, mas as histórias que ajudaram a tatuar aquelas dobras.

Hábil, John Le Carré cria uma situação narrativa que enxerta o leitor na condição de único conhecedor dos muitos fatos e versões que compõem a Operação Windfall. Peter Guillam não é só insistentemente interrogado por jovens agentes – comandados pela burocracia e por um contemporâneo clamor pela transparência pública -, mas submetido a penosas leituras dos próprios arquivos que confeccionou para o caso. É um castigo para Guillam. Já que ele diz não se lembrar do que aconteceu, melhor é ter acesso aos documentos, para refrescar a memória. Recluso por seus superiores a um cômodo e vigiado por outros agentes, Guillam revisita os arquivos, inclusive os falsamente produzidos. A estratégia narrativa de Le Carré é inteligente, mas penosa para o leitor também, que tem acesso a um conjunto maiúsculo de relatórios, memorandos e versões desencontradas, além dos pensamentos e memórias estilhaçadas de Guillam. Há algumas linhas, escrevi que o propósito do autor é despistar e esse cipoal de detalhes funciona muito bem para isso… O resultado é a certeza de que bom espião não é aquele que sabe muito, mas aquele que esconde bem o pouco que sabe.

Talvez seja a idade avançada e um certo cansaço, talvez seja a vantagem da sabedoria dos anciões, mas o fato é que Um legado de espiões funciona como balanço e acerto de contas. É talvez a história de espiões mais sentimental de Le Carré. Mais uma vez, George Smiley não protagoniza a aventura, mas faz aparições igualmente luxuosas e fantasmagóricas. Passado, presente, memória, ficção, vida, desejo ou mera lembrança? Ao final, o leitor se encarrega de descobrir. Um legado de espiões funciona como balanço porque retoma a insustentabilidade de práticas da espionagem internacional e suas incontroláveis consequências. Neste sentido, Um legado de espiões não é só o acerto de contas de Peter Guillam com seus demônios, mas também do próprio Le Carré que aplica doses cavalares de sentimentos aos cerebrais desígnios e manobra com mãos firmes num perímetro muito restrito: um passado a esquecer.

Aos 86 anos, John Le Carré poderia estar descansando, mas está roubando segredos, matando e escrevendo. A esta altura, Um legado de espiões poderia ser uma despedida. Mas se tem uma coisa que Le Carré faz é nos pregar peças: quantas vezes George Smiley já não se retirou e voltou pra salvar o mundo?

* Livro enviado ao site pela Editora Record

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SOBRE O LIVRO


Título: Um legado de espiões
Autor: John leCarré
Editora: Record
Tradução: Roberto Muggiati
Páginas: 252
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SINOPSE – Peter Guillam, parceiro leal e discípulo de George Smiley no Serviço Secreto Britânico — também conhecido como Circus —, aproveitava a aposentadoria na fazenda da família na costa sul da Bretanha quando uma carta enviada pela agência de inteligência britânica o convoca a ir a Londres. O motivo? Seu passado na Guerra Fria veio à tona para confrontá-lo. As operações de espionagem que costumavam ser a menina dos olhos da agência estão sendo examinadas por uma geração que não possui nenhuma memória da Guerra Fria. Agora, alguém terá de pagar pelo sangue inocente derramado em nome de um bem maior. A hora do acerto de contas chegou. Intercalando passado e presente para que cada um conte a própria história, John le Carré nos presenteia com uma obra-prima da espionagem que vai encantar seus milhares de fãs fiéis e conquistar uma nova geração leitores.

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