Por Josué de Oliveira – Uma tendência vem se solidificando nos últimos anos no mundo das séries de TV: as adaptações de filmes para o formato seriado. Pânico, Um Drink no Inferno, O Exorcista, Máquina Mortífera, Os 12 Macacos, Cara Gente Branca e Hannibal são apenas alguns dos numerosos exemplos. O conceito parece ser explorar o universo e os personagens apresentados na produção original, expandindo-os de uma maneira que um longa-metragem de duas horas não seria capaz. Os frequentes anúncios de novas adaptações nessas linhas parecem mostrar que a estratégia vem funcionando.
Uma das séries nascidas dessa onda filme é Fargo, que conta, até o momento, com três temporadas. Idealizada por Noah Hawley, que escreveu todos os episódios, a série adapta o filme homônimo dos irmãos Ethan e Joel Coen, lançado em 1996. Nele, um patético vendedor de carros usados contrata dois criminosos para sequestrar sua esposa, mas tudo dá errado e uma quantidade estarrecedora de gente começa a morrer; a investigação do caso, que parece não fazer sentido algum, fica a cargo da gravidíssima chefe de polícia local, interpretada por Frances McDormand.
A série foi por um caminho menos estrito: apenas a primeira temporada é baseada na película original e, ainda assim, de maneira bem livre; as duas seguintes apresentam histórias novas, ainda que com certo grau de inspiração em outros filmes dos Coen. A principal conexão entre as obras, no entanto, não é o universo ficcional, mas os temas tratados em ambas. Fargo, a série, amplifica as ideias presentes no filme, contando uma história violenta e bizarramente engraçada sobre a crueldade cega do mundo e como sobreviver a ela sem perder a humanidade.
Nesta primeira temporada, somos apresentados a Lester Nygaard (Martin Freeman, o John Watson de Sherlock), um vendedor de seguros da cidade de Bemidji, Minnesota, cuja carreira é, no máximo, medíocre. Num dia particularmente ruim, em que teve de aguentar a esposa comparando-o com o irmão mais bem-sucedido e um bully da infância que decidiu atormentá-lo, ele acaba no hospital. Lá por puro acaso, conhece o assassino Lorne Malvo (Billy Bob Thornton), que lhe dá conselhos. Mais tarde, num acesso de raiva, Lester mata a esposa a marteladas e implora pela ajuda de Malvo, que acaba assassinando o chefe de polícia local numa infeliz coincidência.
Lester consegue se safar simulando que também foi atacado; apenas a policial Molly Solverson (Allison Tolman) suspeita do vendedor e de sua relação com o misterioso Malvo, enfrentando os superiores para encontrar o verdadeiro culpado pelos crimes; a situação fica ainda mais complexa quando assassinos de um sindicato do crime entram na história, e outro policial (Colin Hanks) da cidade vizinha se envolve na investigação.
No Fargo de 1994, não há um personagem como Lorne Malvo, criação exclusiva da série. Presente desde a primeira cena, é ele quem coloca a trama em movimento, agindo a partir de sua cosmovisão profundamente darwinista. Malvo representa o predador, aquele lado primitivo e animalesco da natureza humana que se esconde por trás da fachada de civilidade que assumimos para esquecer de nossos próprios instintos violentos. Não à toa suas constantes referências ao reino animal, onde não há santos, apenas café da manhã e jantar, e sua reiterada identificação com a imagem do lobo.
“Seu problema é que você passou a vida inteira
achando que existem regras. Não existem.”
Munido dessa concepção a respeito de como os seres humanos são, Malvo se dá completa liberdade para mentir, manipular e, com frequência, matar – o que for necessário para atingir seus objetivos, que nem sempre se mostram claros. Malvo é uma força da natureza, guiado pela certeza de que códigos morais não passam de uma piada ruim.
Hawley pinta Malvo com tons de alegoria. Além do lobo, outro símbolo associado a ele é o próprio diabo, a serpente que quebra a ordem no Paraíso e desperta a corrupção no coração dos homens. Parece haver algo de inumano em sua capacidade de manter-se um passo a frente de todos, cometendo atos cada vez mais brutais e escapando sem consequências, e nas enigmáticas parábolas com as quais se comunica. A aura de ameaça que o acompanha cresce a cada episódio, assim como o temor que sentimos por aqueles que cruzam seu caminho.
Mas o principal aspecto da figura de Malvo é como suas palavras contaminam outras pessoas, tentando-as (de novo o paralelo com a serpente) a abandonar seus princípios e assumir uma vida sem regras. Esse é o eixo de sua relação com Lester.
“Lester… você foi um menino mau?”
Lester emula o vendedor de carros usados do longa original, sendo que seu arco não envolve a simulação do sequestro da esposa para embolsar o resgate pago pelo sogro rico. Aqui, ele descobre seu próprio lado bestial ao assassinar a amarga Pearl, após esta acusá-lo de não ser homem de verdade. Contaminado pelo contato com Malvo, Lester passa boa parte desta temporada tentando se livrar das suspeitas que pairam sobre si – e descobrindo no caminho do que é capaz para preservar a própria sobrevivência.
Se em Malvo temos a expressão exata do abandono dos escrúpulos em troca da busca franca pelos interesses pessoais, em Lester temos uma versão em andamento do mesmo fenômeno. A cada novo ardil para não ser preso, o outrora pacato vendedor de seguros se afasta da decência que sempre procurou cultivar – ou, como Malvo sugere, apenas se abre para sua verdadeira natureza. E, através da trajetória do personagem, a série nos leva a questionar nossas próprias noções de certo e errado, de moral, bom comportamento e vida em sociedade, à medida que as evidências em favor da visão fatalista de Malvo se amontoam.
O contato entre Lester e Malvo põe em movimento forças que ambos não conseguem controlar, o que chama a atenção para outro tema importante na série: a incapacidade humana de dar conta da realidade. Não é a toa que a maioria dos policiais envolvidos com as investigações esteja perdida. Nunca viram tamanha violência e não conseguem enxergar o padrão escondido na anormal sequência de eventos que se desenrola. Desejam apenas que aquilo acabe e que a calmaria usual volte a reinar. E a ironia é que o ponto de partida de tudo é uma conversa casual entre um assassino com ares de filósofo e um inseguro vendedor de seguros.
“Ele não vai parar. Você sabe disso, não sabe?”
A busca pela razão em meio a todo esse caos fica nas mãos de Molly, policial inexperiente que contraria as ordens do novo chefe de polícia – mais um dos que clamam por uma resposta solução simples para os acontecimentos – e decide investigar Lester, ciente de seu inusitado contato com um assassino profissional. Molly pressente que há mais na história do que mortes desencontradas, e é punida pela hierarquia por não se conformar com as respostas inocentes nas quais todos insistem em acreditar.
Mas Molly é uma pessoa só se erguendo não apenas contra Lester e Malvo, mas contra toda a crueldade e desordem do universo. Sua crença de que pode compreender os fatos esbarra não apenas na incompetência de seus pares, mas nas demonstrações de que, lá fora, predadores seguem abatendo suas presas com enorme naturalidade. A cena do tiroteio em meio a nevasca, no sexto episódio, é uma representação visual poderosa da jornada de Molly: à sua volta, alheias a ela, metralhadoras disparam numa declaração de que o mundo segue seu curso indiferente, e a tempestade a impede de enxergar qualquer coisa com clareza.
Molly é construída como uma mulher forte e de princípios, incapaz de olhar para o outro lado diante de tanto a ser desvendado, e em Fargo isso é mais do que suficiente para colocá-la em perigo real. A série é rápida em mostrar que ninguém que acredita no restabelecimento da ordem está a salvo, o que nos faz temer genuinamente por ela. Ao se recusar a manter a ignorância, como seu chefe e outros policiais, ela se coloca no caminho dos agente do caos.
“Você fez uma escolha. Eu sou a consequência.”
O exame dos temas filosóficos e religiosos levantados pelo roteiro se confunde com o desenvolvimento dos personagens e com o próprio decorrer da trama, formando uma unidade complexa e bem concebida, onde uma coisa não existe sem a outra. Há humor, suspense, ótimas cenas de ação, mas a série triunfa mesmo por confiar na força de suas ideias, no embate de visões de mundo ilustrado sobretudo pelo confronto entre Molly e Malvo.
Não há compromisso com convenções como o triunfo do bem sobre o mal ou a felicidade dos mocinhos ao fim de tudo. O que não significa que Fargo abrace o pessimismo. O desfecho enfatiza a ambiguidade, nos obrigando a encarar o fato de que talvez a influência exercida por Malvo seja mais forte do que nossa humanidade gostaria de admitir, mas que é possível encontrar poderes maiores do que nossos próprios impulsos. Talvez estes firmem nossos pés nos momentos de desespero, em que estamos divididos entre seguir nossos princípios ou agir como um predador; talvez eles salvem nossa vida.
[Imagens: Youtube – Divulgação]
Formado em Estudos de Mídia pela UFF e vive em Niterói, RJ. Trabalha na área de desenvolvimento de livros digitais. Gosta de ler, escrever, ver filmes esquisitos e curte bandas que ninguém conhece. Atualmente, revisa seu primeiro romance policial.
Série excelente, principalmente na segunda temporada. Porém a terceira foi bem fraca.
Estou na metade da segunda e também curtindo um bocado, Alan. Mais personagens, uma temática mais voltada para questões de família. Ouvi isso da terceira ser a mais fraca, mas também que, ainda assim, é melhor que boa parte das séries atuais, hahaha.
Abração!