De Borges a Fincher: outras notas sobre o policial realista

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Por Fernando Maia – A insensatez de se discutir a literatura policial realista aludindo a um texto de Borges parece óbvia. É conhecida a reticência do autor argentino a qualquer proposta de literatura realista, entendendo-se realista a literatura que joga com a verossimilhança (realidade não parece um termo propriamente ficcional), ou que fundamenta o seu jogo em precondições verossímeis. Pelas restrições expostas ao romance psicológico, bem como outras vindicações do gênero fantástico e tranquilamente pela sua própria prosa ficcional, Borges definitivamente prefere os jogos propostos pela literatura fantástica. Mas em A Morte e a Bússola, conto do seu “Ficções”, ele apresenta, com a contumaz sutileza das artimanhas borgeanas, um debate, ou pelo menos, uma problemática entre as duas possíveis, diremos, abordagens ficcionais: o realismo e o fantástico.

 

E é por meio de dois personagens que o debate acontece: Erich Lonröt, um decifrador à moda de Auguste Dupin, e Franz Treviranus, um comissário da polícia. Temos então um crime, o primeiro de uma série de fatos de sangue, que é apresentado nesse conto como enigma. Lonröt se apega aos elementos simbólicos que rodeiam o ocorrido e é só por isso que ele se interessa. Treviranus é mais realista e, para ele, o crime não passa de um crime. Atesta que aquele homicídio fora a consequência de uma tentativa mal sucedida de furto, já que se supunha que a vítima estava de posse das melhores safiras do mundo. Mas Lonröt rejeita essa hipótese acusando-a de ser desinteressante. Aí revela preferir uma hipótese rabínica, já que a pretensa vítima era o Tetrarca da Galileia, presente naquela cidade (uma onírica Buenos Aires, mas que poderia ser Recife, Paris ou Adis Abeba) por ocasião de um congresso talmúdico.

O conto segue com mais dois homicídios, cujas pistas são apreendidas por Lonröt com tintas fantásticas. E assim ele vai montado a solução do enigma. Treviranus, por sua vez, também tem relativo sucesso e, talvez percebendo o realismo além da forma como se apresentam aquelas pistas ou usando essa tinta para interpretá-las, chega a advertir Lonröt de que tudo pode não passar de um simulacro. Junto com a insinuação, envia a Lonröt um mapa, por meio do qual esse último decifra o local onde acontecerá o quarto homicídio. Então o nosso tahu segue sozinho até o local decifrado e lá encontra Red Scarlach, justamente o criminoso que, como aludido nominalmente no primeiro parágrafo do texto, tinha jurado Lonröt de morte em uma ocasião diegeticamente anterior àquela história. Seguem então as revelações do próprio criminoso sobre toda a armação: a morte do rabino, a primeira das mortes, fora decorrência inesperada do roubo das safiras, como Treviranus supusera. Scarlach, o dândi, aproveitou as aparências fantásticas que a cena do crime providenciava e as organizou como um enigma. Depois, com base nas premissas do primeiro exercício, perpetrou o segundo homicídio e simulou a existência do terceiro. O objetivo de todo esse estratagema sangrento era exercitar a temerária perspicácia do seu inimigo, Lonröt, que logo se interessaria em resolvê-lo, caindo numa armadilha. Finalmente, Scarlach desfere um tiro em Lonröt, confirmando que este acertara o local do quarto fato de sangue, cuja vítima era ele mesmo. Ou seja, a história realista latente é a verdadeira. A história fantástica manifesta foi artifício do vilão Scarlach. Treviranus, o policial que vive a história realista, já desvendara a motivação, um dos propósitos fundamentais do quebra-cabeça engendrado por um homicídio, nas suas primeiras falas. Depois sugerira a Lönrot que tudo podia ser, na verdade, um embuste. Então, temos um escritor com claras ressalvas ao realismo dando a razão ao policial realista, protagonista de uma história policial que se esconde por trás de outra fantástica. E de uma forma contundente, já que ele mata o decifrador, um arquétipo que pertencia ao fantástico, segundo sua própria definição.

Entretanto, é difícil confirmar se a razão borgeana estaria num pretenso relato realista, ou no elemento precípuo da narrativa policial, o jogo de enigmas, no caso vencido parcialmente por Lonröt (afinal ele decifra o local onde se finalizaria a malfadada série). Afirmar que Borges tinha qualquer intenção de vindicar a superioridade do realismo sobre o fantástico é certamente insensato. Mas negar talvez o seja também. E aí, é melhor evitarmos esse irresistível labirinto borgeano e tomar um rumo mais terreno.

 

Nisso, chegamos a Zodíaco, o filme de David Fincher de 2007. Precisamos primeiro tratar da realidade; agora o termo é adequado. No final da década de 60 e começo da de 70, alguém cometeu cinco homicídios nas redondezas de São Francisco na Califórnia. Esse cidadão enviava cartas cifradas aos jornais, ostentava símbolos exóticos, vestia fantasias, referenciava-se em filmes antigos, contatava a polícia por telefone para revelar os seus crimes e assumir crimes que ele não cometera. Ele se deu a alcunha impressionista de Zodíaco. As polícias envolvidas, já que os homicídios ocorreram em várias jurisdições, nunca conseguiram prender esse indivíduo. Mas enfim, temos outra série de fatos de sangue, que inclusive por ação deliberada do criminoso (também fizera assim Red Scarlach) é proposta como enigma à polícia, ao Estado. David Fincher, uma criança californiana na época, resolveu transformar essa história em cinema quase quatro décadas depois. O filme tem inúmeras qualidades, mas a mais importante é a metanarrativa – a literária, não a cinematográfica – justamente quando propõe o debate entre o realismo e o fantástico. Temos dois personagens novamente: um jovem cartunista de um jornal de São Francisco, Robert Graysmith, e um investigador do Departamento de Homicídios dessa metrópole, Dave Toschi. O primeiro personagem é Lonröt, mas é também, Sherlock Holmes e é também Auguste Dupin. O segundo é Treviranus, é Gareth Lestrade da Scotland Yard e é também o senhor G, delegado de Paris. A dinâmica entre os dois, dadas as suas características, é semelhante à que acontece em A morte e a bússola. Ao primeiro interessam os enigmas: as cartas cifradas, o simbolismo, as impressionantes conexões entre os ataques. Ao segundo, interessa a elucidação do delito e o cumprimento do papel que cabe a si no processo que levará o homicida à punição. O filme segue e Robert Graysmith, depois de decifrar o enigma por meio das pistas que ele aborda de maneira fantástica, exige que Dave Toschi concorde com ele sobre a identidade do Zodíaco. Toschi pede evidências: pegadas, exames grafológicos, impressões digitais, testemunhas oculares. Graysmith não tem nada disso. Em vez disso tem, além da convicção, a sua lógica, que é tremendamente precária. E aí, o nosso Sherlock clama que Toschi pense como se não fosse policial. Esse último responde justamente que é policial. Toschi ainda terminará a conversa com o conselho impertinente ao seu interlocutor de que ele escrevesse um livro. A síntese, se é que todo esse debate encerra uma dialética, se encontra nesse conselho borgeano, por definição: Junte toda essa história fantástica que você elaborou e escreva um livro.

Tanto no conto de Borges, como no filme de Fincher, o arquetípico protagonista do policial fantástico elabora, ainda que mediante as sugestões do criminoso, uma narrativa fantástica para a sua investigação. E, se é possível chamá-lo assim, o policial realista, brandindo um imperioso charuto ou costeletas hirsutas, insiste o tempo inteiro que a investigação prescinde menos da fantasia do que da realidade.

Guardadas algumas diferenças nas formas, o jogo proposto por Fincher é o mesmo que propõe Borges. Mas enquanto esse finaliza o debate (conclusão talvez não perspicaz, mas certamente temerária da minha parte), com a morte do fantástico, o primeiro segue outra linha sugerindo que a abordagem fantástica (Graysmith) de uma história policial conseguiu resolver o enigma, enquanto a realista, vivida por Dave Toschi, permitiu que um criminoso não fosse devidamente punido. E se o cineasta, por meio do seu policial realista diz que o policial fantástico é coisa da ficção, qual seria a sua intenção ao fazer uma ficção, cuja grande realização é ser uma ótima narrativa policial realista? Talvez isso seja um labirinto da mesma forma e, por isso, devemos parar aqui.

Fernando Maia é escritor. Publicou em 2014 o livro de contos Casos Recifenses, no qual apresenta o Investigador Scanoni. Nasceu e vive no Recife e é pai de Maria Flor e de João.

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