Por Rogério Christofoletti – A série televisiva mais comentada do momento não é apenas um triunfo das redes sociais, mas sobretudo da sua capacidade narrativa. Produzida pela HBO e Sky Atlantic, de cara, Chernobyl desbancou sucessos como Breaking Bad e Game of Thrones, que antes tinham as melhores pontuações no IMDb. A história do maior desastre nuclear do planeta é um prato cheio de dramas pessoais, fincados sobre um terreno de permanente tensão. Em abril de 1986, o reator de uma importante usina na Ucrânia explode, contaminando tudo ao redor num raio de dezenas de quilômetros e espalhando cinzas radioativas até a Suécia!
Não fosse a terrível tragédia que causa diversas mortes e a evacuação de uma cidade inteira, há ainda as disputas de poder dentro do governo soviético, indisposto a reconhecer o tamanho do problema e a receber auxílio de outras nações para controlar a situação. Se você tem menos de quarenta anos, talvez tudo isso não soe muito alarmante. Coloque na balança que ainda estávamos em plena Guerra Fria, que os efeitos maléficos da radiação eram conhecidos quase que só por especialistas e que não havia internet nem tecnologias importantes para enfrentar uma crise como essa. Sim, Chernobyl mudou a nossa história, alterando não apenas as plantas das centrais nucleares, mas protocolos de segurança, tratamentos médicos, investimentos científicos, pactos internacionais e a próprio senso comum sobre radioatividade.
Infelizmente, é uma grande história para ser contada, e o criador Craig Mazin comprimiu dois anos em cinco episódios com drama, inteligência e suspense. As mortes de gente comum e as perdas pessoais drenam a gordura das explicações mais científicas ao longo dos capítulos. O elenco afinado e os diálogos bem cortados fazem o ritmo oscilar, fazendo com que, diversas vezes, despenque vertiginosamente, alcançando quase a marcha de ponto morto. Nessas horas, não há tédio ou cansaço; há o pesar das grandes tragédias, como se o tempo parasse para que a vida (e a morte) atravessassem a rua.
Do tipo documental, mas com liberdades narrativas, Chernobyl não poupa críticas explícitas ou veladas ao regime moribundo da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. O burocratismo técnico, o ufanismo cegante, a máquina partidária, tudo, enfim, parece ser o azeite que move a máquina do maior desastre nuclear que já testemunhamos. Há muita verdade ali, mas o telespectador deve lembrar que se trata de uma produção anglo-americana, ideologicamente orientada para satanizar Moscou e seus arredores. Para equilibrar a balança, recomendo ler Vozes de Tchernóbil, de Svetlana Aleksiévitch, uma tristíssima colcha de retalhos memorialísticos sobre este episódio e o que ele provocou na humanidade.
Apesar do ranço da revanche ideológica, existe um trunfo narrativo em Chernobyl – a série – que merece a atenção. Diretores, roteiristas e atores não estão contando a história de um furacão, de uma guerra ou de uma invasão bárbara. Esses perigos são visíveis e plasticamente catastróficos. Em Chernobyl, eles estão falando de algo que não tem cor nem cheiro, não pode ser contido numa garrafa, e pode até atravessar as paredes. Um inimigo mortal, silencioso, invisível e muito desconhecido. Está esperando um artefato radioativo brilhando no escuro, emitindo um zumbido tétrico? Esqueça. O terror é mais sutil, reage com o DNA das pessoas, devasta suas carnes e vidas.
Mas, note: em Chernobyl, o grande perigo é a radioatividade, mas é também a nossa ignorância. O reator explodiu mesmo? Como é possível? Há outros registros de cientistas soviéticos sobre casos semelhantes? E agora, o que podemos fazer para conter essa ameaça? Quem foi responsável por essa tragédia? O que o governo esconde? Por que não alertaram os habitantes de Pripyat do quanto tudo aquilo era perigoso? Ainda corremos risco de algo parecido?
Forte e impactante, a série da HBO/Sky Atlantic flerta com o drama e o terror, sem deixar de se render aos elementos do gênero policial. Temos uma física nuclear perseguindo pistas para explicar o que teria acontecido naquela fatídica noite de abril. Temos o mistério que ronda as circunstâncias do desastre. Temos mais mistérios sobre porque as autoridades esconderam tantos outros detalhes importantes para gerir usinas daquele tipo. Temos corpos sem vida e a curiosidade que nos impele a investigar. A depender do que formos encontrando pelos escombros, talvez tenhamos também não um acidente, mas um crime. Circuito fechado.
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Jornalista, dramaturgo e professor universitário. Já publicou 12 livros na área acadêmica e escreveu oito peças de teatro. É um dos autores do e-book “Os Maiores Detetives do Mundo” (Chris Lauxx).