Marçal Aquino volta pro crime com traição e bandidagem

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Por Rogério Christofoletti – Toda história de infiltrado é uma história de traição. O sujeito se passa por alguém pra entrar no bando, ganha a confiança das pessoas e quando menos se espera… a casa cai! O roteiro é conhecido porque já foi bem martelado no cinema e na literatura. Mas para quem vive nas sombras, na franja da lei, não é fácil descobrir um infiltrado, afinal, todos ali escondem segredos, praticam crimes e enganam pessoas. Nada é autêntico pra valer e a lealdade é costurada nos pequenos gestos que parecem dignos de confiança, em atitudes cotidianas que fazem com que se baixe a guarda.

“Baixo Esplendor” (Cia das Letras), lançamento de Marçal Aquino, é uma legítima história brasileira de breves e permanentes traições. Somos colocados nos ombros de Miguel, um policial infiltrado numa quadrilha de roubo de cargas em plena ditadura militar. Somos também levados a acreditar nele e nas suas intenções, num claro-escuro que é tão próprio da literatura policial.

Afastadas as ilusões, o fato é que o romance rompe um longo hiato de 16 anos do escritor paulista, oferecendo uma história de crime justa, honesta e potente.

Baixo Esplendor é um romance justo porque sua prosa não tem sobras nem gorduras, e é honesto porque, em nenhum momento, o autor cede à tentação de usar escoras improvisadas para sustentar a ambientação de sua trama.

Naquelas páginas, estamos em 1973, desfilam pelas ruas jipes militares, opalas possantes e gordinis charmosos. Com o couro curtido na literatura dos marginais, Marçal Aquino não recorre ao uso artificial de gírias da época para dar aos seus personagens a prosódia adequada. Ele até poderia fazer isso, mas recusa de um jeito natural, como quem se benze automaticamente diante de uma igreja.

Na superfície do texto, tudo funciona de maneira orgânica: o figurino meio-hippie, os cenários paulistanos decadentes, a gastronomia engordurada dos botecos, a fauna pé-de-chinelo das periferias. Quem viveu aqueles tempos se sente bem à vontade, como no aconchegante banco de trás de um Chevette, e quem é novato, não sente o tranco seco dos freios de um Volks.

De carona com o polícia infiltrado, conhecemos as manhas de muambeiros e receptadores; trocamos tiros com a ralé; churrasqueamos com os parentes dos bandidos – sim! Eles têm mulher e filhos!; e brindamos à amizade verdadeira que até mesmo os mais desonestos podem cultivar. O passado misterioso com o pai delegado, uma paixão sexualmente inflamável com Nádia, e o medo permanente de ser descoberto fazem da alma de Miguel um lugar tão barulhento e tumultuado quanto a montanha-russa do PlayCenter.

Diferente de B.Kucinski – um devoto cronista dos crimes da ditadura militar -, Marçal Aquino embaça a lente que captura a década mais sangrenta dos presidentes-generais. Marçal não oculta os milicos no poder nem amacia sua presença. Mas os mistura com a paisagem daquelas fotos esmaecidas. Em “Baixo Esplendor”, os militares compõem um pano de fundo rançoso e sujo – como o feltro da mesa de sinuca -, ao lado de policiais corruptos e violentos grupos de extermínio. É o tempo do Esquadrão da Morte, da tortura secreta, dos desaparecimentos suspeitos, dos assassinatos perversos e impunes, de cancelamento de CICs, o antigo nome dos CPFs…

Como nos roteiros cinematográficos de “O Invasor”, “Os Matadores” e “Ação Entre Amigos” – todos dirigidos por Beto Brant -, “Baixo Esplendor” reserva uma tensão permanente e silenciosa. Aí, a potência do romance. A aparente calmaria alimenta a eletricidade no ar. Mergulhados até o pescoço na trama, farejamos que algo não vai bem, e as ações evoluem em ritmo cadenciado, acumulando focos de fricção que vão inevitavelmente nos desorientar. Mais que isso: os tensionamentos vão se acumulando como corpos num necrotério marginal, e ninguém vai conseguir disfarçar o odor sentido. Isso não vai acabar bem, pensa o leitor de “Baixo Esplendor” a cada virada de página. Isso não pode acabar bem, pensa mais uma vez. Marçal Aquino, com mira certeira e balas contadas no tambor, dá um jeito de bem acabar…

 

SOBRE O LIVRO

Título: Baixo Esplendor
Autor: Marçal Aquino
Páginas: 264
Editora: Companhia das Letras
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SINOPSE – O ano é 1973, um dos períodos mais duros da ditadura militar no Brasil. É num ambiente contaminado pela paranoia que se move Miguel, um agente do setor de Inteligência da polícia civil cuja especialidade é se infiltrar em quadrilhas sob investigação. Numa das operações, ele se aproxima de um grupo de ladrões de carga, tornando-se íntimo de Ingo, o chefe, que não só apadrinha sua entrada no bando como lhe apresenta a irmã, Nádia, com quem Miguel inicia um relacionamento que tem no sexo seu ponto de combustão. Profissionalmente vaidoso, Miguel acredita que, na hora adequada, não terá dificuldades para romper os laços surgidos durante a operação. Mas as coisas não saem como ele imagina: apaixonado por Nádia, o policial se vê surpreendido por dúvidas sobre de que lado irá ficar quando o cerco se fechar sobre a quadrilha. Com uma prosa ágil e intensa, Aquino confirma seu nome entre os melhores da ficção brasileira contemporânea. O mundo do crime nunca foi tão sensual quanto em Baixo esplendor.

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