Dennis Lehane e a reinvenção do noir

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Por Mateus Baldi – Quando Um Drink Antes da Guerra saiu nos Estados Unidos, há mais de 20 anos, Dennis Lehane ainda era um nome desconhecido. Nos meses seguintes, contudo, o descendente de irlandeses abocanhou o Shamus Award e uma resenha do New York Times onde os protagonistas – Patrick Kenzie e Angie Gennaro – são descritos como irreverentes e contrastantes com a seriedade do tema racial da obra.

Envolvido pelo sucesso do primeiro livro, Lehane começou a trabalhar na sequência que viria a ser conhecida pelos fãs como o verdadeiro início da série Kenzie & Gennaro. Retratando em suas páginas um casal de amigos – ao melhor estilo Nick & Nora Charles, do mestre Dashiell Hammett –, Dennis conseguiu unir o espírito libertário dos anos 1990 com a violência impregnada nas páginas do já citado Hammett e de seus contemporâneos James M. Cain e Raymond Chandler. Assim, Apelo às Trevas, segundo título da série, determinou a consagração de Lehane.

Aliando uma ótima trama de character background com serial killer e doses cavalares de adrenalina, Dennis conseguiu alçar seus personagens ao limite entre o best-seller puxado por Michael Connelly e o policial-padrão de Hammett e companhia.

Sagrado, terceiro volume e ponto alto da série, apresenta ao leitor as consequências do final bombástico e estarrecedor de Apelo. Separados por questões de ordem suprema, Patrick Kenzie e Angela Gennaro são sequestrados por um bilionário à beira da morte. Para serem libertados, precisam descobrir onde se meteu a filha dele, uma linda mulher que parece ter atraído para a morte o primeiro responsável pelo caso, um cara chamado Jay Becker – mentor de Kenzie, o que só atiça mais a fogueira. Sagrado é uma sucessão de plot twists inteligentes e coesos que transforma a narrativa num barril de pólvora pronto para ser detonado.

Completamente fatigado pelo enredo anterior, Lehane soltou aquele que é considerado o melhor romance dos detetives: Gone, Baby, Gone.

Finalmente tocando a agência de investigações, Pat e Angie são catapultados para algo inimaginável: uma menininha foi sequestrada. O caso virou notícia nos principais jornais; a polícia não sabe o que fazer. Resta à família da pequena Amanda recorrer aos detetives. Uma trama intrincada se desenvolve. Lehane balança em alguns momentos, mas entrega um final satisfatório e cheio de interrogações para o futuro.

Quando o século 21 começou a se assomar no horizonte, Lehane pôs um ponto final naquela coisa toda de Nick & Nora encapsulados com Kurt Cobain. Dança da Chuva, último romance da chamada fase um, trata da indústria do cinema, o stalk e vira uma saraivada de intimismo e vingança. Karen Nichols procurou a ajuda de Patrick: estava sendo assediada na academia. Caso resolvido, tudo indo muito bem, quando… meses depois, Karen é encontrada morta e sua vida é muito diferente daquela que Kenzie conhecera. Arrasado pela descoberta, ele parte à procura de Angie – sim, estão brigados de novo – para resolver o caso. Um final digno de anos 90 para os grandes detetives dos anos 90.

Lehane passou a se dedicar a outros projetos. Escreveu o badalado Sobre Meninos e Lobos, o livro de contos Coronado, o cultuado Ilha do Medo e retornou às sagas com uma pegada histórica que nenhum fã poderia imaginar. Naquele Dia, um retrato épico do pós-WW1, nos mostra a família Coughlin e todas as desventuras que Boston passava depois de 1918. Lehane curtiu a brincadeira e resolveu lançar uma sequência, Os Filhos da Noite. Antes, porém, diante da chiadeira geral dos fãs saudosos de Kenzie & Gennaro, o americano soltou o mediano Estrada Escura.

Anos depois, a agora adolescente Amanda – sim, aquela que sumiu em Gone, Baby, Gone – volta a desaparecer. Em seu rastro, máfias da Europa oriental, um artefato hammettiano à la Falcão Maltês e mais doses cavalares de violência. Apesar da trama fraca, não teve má repercussão graças ao bom plot dos protagonistas – casados, formados na faculdade e pais de Gabriella, Patrick e Angela levam uma vida encapsulada pelo frenesi do século 21. Não há mais rock ‘n roll. Não há mais violência. A Crise de 2008 bateu à porta e todos estão desempregados, fazendo bicos.

Lehane sabe como acertar mesmo errando (feio). Tem o dom para isso. A série ainda conta com o ótimo Bubba Rogowski, um obeso que sofre de síndrome do pânico e fornece os armamentos necessários para as empreitadas dos protagonistas – sim, até mesmo Lehane cai no clichê do amigo-do-detetive, mas, de novo, acerta na mosca do erro, tornando-o extremamente divertido.

Lehane, em resumo, não é prolífico como Michael Connelly ou Patricia Cornwell. Não escreve um livro por ano e tampouco sente vontade de fazê-lo. Cada obra é uma obra, única, universal, própria daquele momento. Sem hesitar: vale a leitura.

PS: para uma antologia chamada FaceOff, lançada em junho de 2014, Lehane e Connelly escreveram juntos uma história que une Kenzie e Harry Bosch. Disponível na Amazon para encomenda.

 

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