Umberto Eco: o escritor que não corria dos policiais

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Por Rogério Christofoletti – Pouca gente ajudou tanto os livros de crime e mistério quanto Umberto Eco. A afirmação parece um exagero contaminado pela morte do escritor, anunciada ontem. Quando morrem os famosos é comum enaltecermos suas qualidades e esquecermos seus erros. Neste caso, a falha é só minha. Este texto já deveria ter saído antes, porque essa tese pulsava na cabeça há meses. Protelei o quanto pude e cheguei tarde: o remorso é uma forma de morte.

 

 
Mas eu dizia que pouca gente ajudou tanto o gênero policial quanto Umberto Eco. A principal razão é “O Nome da Rosa”, primoroso romance que não apenas revelou o talento literário do acadêmico como chamou a atenção de quem simplesmente torcia o nariz para aquelas prateleiras. Emoldurada em complexas descrições dos cenários da vida medieval, a história é uma autêntica trama de crime e suspense, conforme estabeleceram Conan Doyle e Christie, por exemplo. Uma série de misteriosos assassinatos abalam a tranquilidade de um mosteiro, o que convoca uma dupla de investigadores para perseguir pistas nas trevas daquelas grossas paredes. Esses detetives ancestrais não podem ser outra coisa senão um frade franciscano e um noviço, personagens credenciados para compreender as rotinas e agruras eclesiásticas, com acesso privilegiado àqueles ambientes. Generoso, Eco oferece uma grande quantidade de referências e homenagens para diversão dos leitores atentos. Nossos heróis são Guilherme de Baskerville e Adso de Melk, abertamente inspirados em Sherlock Holmes e Watson não apenas pelas citações nominais mas nas próprias características e comportamentos.

 

“O Nome da Rosa” é um romance que liga dois mundos: o medieval e o policial. É um livro sobre livros, porque remete a um tomo perdido de Aristóteles, mas é também um livro de crimes e de investigação. Ao final, descobrimos o responsável pelas horríveis mortes, e a verdade se restabelece, como nos bons thrillers.

 

Não temos nas mãos só uma boa história policial, mas um até então inédito empreendimento no gênero: quantos romances policiais medievais você conhece? Não se trata também de uma mera novela de crimes, mas um volume de quase 600 páginas com ricas descrições, uma galeria complexa de personagens e um punhado de pistas espalhadas, algumas falsas. Com um detalhe precioso: quem assinava o livro era um dos mais respeitados intelectuais do mundo, com contribuições importantes para a estética, a semiologia e os estudos dos mass-media e das culturas.

Quando “O Nome da Rosa” chegou às livrarias em 1980, Umberto Eco já tinha dividido o mundo em apocalípticos e integrados, já havia assombrado os intelectuais com sua erudição e causado ranger de dentes ao analisar histórias em quadrinhos, moda e outras banalidades da cultura popular. Com as credenciais que tinha e a formação que esbanjava, poderia ter escrito romances complicadíssimos com personagens sem graça em cenários desinteressantes. Não. Fez um livro sobre a Idade Média se tornar um best-seller mundial, com uma história de crimes clássica e uma homenagem a um divertimento pop: encontrar assassinos!

Em “O Pêndulo de Foucault”, Eco não abandona as conspirações, as perseguições e mortes misteriosas. Apimenta tudo isso com muito ocultismo e boas doses de humor sobre a rotina de editores de livros… Depois disso, tornou-se aclamado romancista, respeitado pela crítica e seguido fielmente por seu público. Fez história.

Enquanto outros intelectuais como Vargas Llosa criticavam os livros policiais, vendo neles banalidades e perdas de tempo, Eco mostrou que o prazer da leitura não repousa sobre gêneros e cânones. Ofereceu narrativas bem construídas, personagens marcantes, e muito envolvimento com o leitor. Conhecido por sua erudição, não transpirava arrogância. Famoso por seu apetite por conhecimento, ensinou que os saberes são muitos e podem estar na pilha de gibis surrados, nos romances baratos, nas telenovelas populares.

Umberto Eco enriqueceu a bibliografia do gênero, impulsionou as vendas, atraiu a atenção de diversos públicos e amoleceu a crítica raivosa. Com um tiro só, dois no máximo. Para ele, parecia fácil. Talvez fosse. Uma vez, Eco disse que escrever não era complicado. Bastava traçar uma linha na folha e ao lado dela mais uma. Do lado de lá da margem do rio, colocaríamos um homem que poderia ser um pescador, mas era agressivo e tinha a ficha suja na polícia. Pronto! Já temos um embrião de uma história que pode não acabar bem, típica dos romances que adoramos não largar. Obrigado, Eco, por mais essa!

 

 

 

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2 comentários em “Umberto Eco: o escritor que não corria dos policiais”

  1. Gostei de ler o seu artigo e desde já parabenizo-o.
    Penso que li todos os romances, se assim posso dizer de Umberto Eco (o último o divertido Número Zero).
    Li o policial “medieval” O Nome e a Rosa em 1983 (ou 1984) e a trama, o envolvimento do “detetive” (se assim o podemos chamar) em descobrir o assassino dos copistas, como do livro perdido de Aristóteles, como algo de magnífico.
    Refiro que, como na altura Eco adiantou, durante a Idade Média, a Igreja católica considerava o riso como um pecado. Isto vem a propósito do tomo risonho atribuído a Aristóteles que o autor inventou, como um dos enredos do Nome da Rosa.
    Quanto aos assassinos (brutais), dos copistas, todos estavam ligados à manutenção de uma biblioteca que existia dentro da abadia medieval, que mantinha em segredo obras apócrifas que não eram aceites, em consenso pela Igreja Católica.
    Deixo também algo que na altura considerei muito interessante o nome do “detective medieval” William (ou Guilherme) de Baskerville (ou apelido não vos faz lembrar “O cão dos Baskervilles” de Sir Conan Doyle – Sherlock Holmes, cuja primeira edição foi em 1902?)
    Por último o jovem noviço que assessorava William de Baskerville chamava-se Adso de Melk. Ora Melque é o nome de uma cidade na Áustria onde existe uma abadia beneditina desde 1089 a tal que inspirou Eco a escrever o seu livro.
    Quanto ao Pendulo de Focault, também referido no seu texto, devo dizer-lhe que a discussão, situou-se mais tarde relativamente ao autor Dan Brown (Código Da Vinci).
    O livro em si é cheio de referências esotéricas relacionadas com a Cabala, alquimia, teorias conspiratórias, onde sociedades secretas estão envolvidas num suposto plano para governar a humanidade. O livro em si tem também partes de livros antigos e raros.
    O enredo do Pêndulo de Foucault envolve três amigos, Belbo, Diotallevi e Casaubon que trabalham para uma pequena editora. Tendo lido por demais manuscritos ocultistas de teorias da conspiração, eles decidem inventar sua própria teoria por diversão. Eles chamam este jogo de sátira intelectual de “O Plano.”
    Belbo, Diotallevi e Casaubon tornam-se cada vez mais obcecados com O Plano, às vezes chegando a se esquecer que trata-se somente de um jogo. Pior ainda, quando os partidários de outras teorias da conspiração ficam sabendo sobre O Plano, eles o levam a sério. Belbo torna-se o alvo de uma sociedade secreta que acredita que ele possui a chave para tesouro perdido dos Cavaleiros Templários.
    Li o livro O Pêndulo de Foucault em 1989 (90), e a polêmica que envolveu Eco com Dan Brown foi propósito do livro deste último O Código Da Vinci datado de 2003.
    Disse na altura Umberto Eco:
    “Eu inventei Dan Brown. Ele é um dos personagens grotescos do meu romance que levam a sério um monte de material estúpido sobre ocultismo. O Pêndulo de Foucault projeto brinca com teorias conspiratórias e teve início com uma pesquisa entre 1.500 livros de ocultismo reunidos por seu autor. Ele (Dan Brown) usou grande parte do material.”
    Em ‘O Pêndulo de Foucault’, eu havia inserido um bom número de ingredientes esotéricos, que podem ser encontrados no Código Da Vinci. Os meus personagens, ao elaborarem os seus projetos, levam em conta a importância doGraal, por exemplo. Eu quis fazer uma representação grotesca daquilo que eu via em volta de mim, de uma tendência da qual eu previa o crescimento. Era fácil fazer uma profecia como esta. Ao pesquisar para escrever ‘O Pêndulo de Foucault’, eu esvaziei todas as livrarias que já se especializavam nessa “gororoba cultural”.
    Dan Brown copia livros que podiam ser encontrados trinta anos atrás nos sebos da Rue de la Huchette, em Paris. O sucesso pode ser explicado pelo fato de que os autores desses best-sellers levam tudo isso a sério, e ainda pelo fato de que as pessoas são sedentas por mistérios. Em ‘O Pêndulo de Foucault’, eu cito a frase de G.K. Chesterton:
    “Quando os homens não acreditam mais em Deus, isso não se deve ao fato de eles não acreditarem em mais nada, e sim ao fato de eles acreditarem em tudo”.
    Polêmicas à parte, sem dúvida alguma Eco ficará para sempre como uma referência para os séc XX e XXI, pelo sem pensamento, escrita e por tudo que representou.
    Desculpe se me alonguei no comentário.
    Um Abraço
    Ricardo Pocinho

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