O escritor, poeta e letrista Braulio Tavares deu boas-vindas a 2021 planejando um presente para fãs da ficção policial. Através da Editora Bandeirola, ele escolheu histórias preferidas de sua biblioteca pessoal para formarem a antologia Crimes Impossíveis, que segue em financiamento coletivo no Catarse até o dia 12 de junho.
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O livro é uma seleção de contos policiais clássicos, os chamados crimes de quarto-fechado, organizados e traduzidos por Braulio. Publicados entre 1838 e 1933, os contos fazem parte da primeira fase da literatura policial, trazendo autores como Arthur Conan Doyle e seu Sherlock Holmes, Edgar Allan Poe, GK Chesterton e Maurice Leblanc, hoje redescoberto através da série Lupin, da Netflix.
Nesta entrevista ao Literatura Policial, Braulio comenta sobre o tipo de contos encontrados na antologia e curiosidades sobre a seleção das histórias.
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1. Que tipo de contos seriam os contos de quarto fechado na literatura policial? Qual a importância deles para o gênero?
Existem mil variantes, mas a situação mais simples é uma pessoa assassinada dentro de um aposento trancado por dentro, de tal modo que seria impossível o criminoso ter entrado e ter saído. Sobre essa premissa simples, foram construídas milhares de variantes. Uma tendência importante é a que cria métodos engenhosos para trancar o quarto pelo lado de fora. Por exemplo: há um ferrolho por dentro da porta, e o assassino, depois de sair, usa um ímã que movimenta o ferrolho pelo lado de fora. Eu tive essa idéia quando tinha uns 15 anos e lia muito esse tipo de conto. Claro que descobri, depois, que mil pessoas já tinham usado esse método. Outros métodos consistem em deixar algum mecanismo disfarçado dentro do quarto para que ele se tranque sozinho após a partida do criminoso. Por exemplo, a tranca está conectada a uma vela que é deixada acesa, e quando a chama da vela chega a um certo ponto ela desencadeia o mecanismo simples (cordões, palitos, etc.) que faz tombar a tranca. São métodos que deixam pequenos indícios materiais; a polícia vê mas não dá importância, mas o detetive examina e acaba deduzindo o que aconteceu. São contos de mistério e de engenhosidade, que estabelecem um desafio entre o autor e o leitor. O autor propõe uma situação que parece sobrenatural (parece haver nela o envolvimento de espíritos, uma desmaterialização, sei lá o que) mas depois vê-se que ela pode ser explicada de maneira concreta, material, realista. É claro que a partir de certo ponto, da década de 1930 em diante, isso foi chegando a um paroxismo barroco. As situações criadas pelos grandes mestres do gênero (John Dickson Carr, Edward D. Hoch, Clayton Rawson, etc.) são tão complicadas que fogem por completo ao romance realista, são situações altamente improváveis e rebuscadas, embora nada rigorosamente sobrenatural aconteça. E se transforma numa literatura lúdica, um jogo de raciocínios, onde a criação literária do tipo psicológica e social fica totalmente em segundo plano.
2. Que dificuldades você teve para selecionar os contos da antologia?
A maior dificuldade é o excesso de material. Robert Adey, em sua compilação bibliográfica Locked Room Murders, elencou 2.019 exemplos, entre contos e romances. Como essa compilação é de 1991, nestes trinta anos certamente o gênero se expandiu bastante. Outro problema são os direitos autorais. Muitos leitores nem pensam nisso, mas publicar uma antologia é sempre uma enorme dor de cabeça. Para quem edita, um livro com 15 autores significa 15 pesquisas, 15 contatos, 15 negociações, 15 assinaturas de contrato, 15 prestações de contas, 15 pagamentos trimestrais a serem feitos – por causa de um único livro. Nas minhas antologias (para a Casa da Palavra, a Ímã, e agora a Bandeirola) procuro colocar muitos autores em domínio público. Por um lado, evitamos esse desgaste (e essa despesa) de negociar e pagar os direitos. Por outro, trazemos para o leitor comum a chance de conhecer autores de 100 anos atrás, que na maioria dos casos não estão sendo publicados no Brasil (com exceção dos clássicos, claro – Allan Poe, Doyle, etc.).
3. Um dos contos de Crimes Impossíveis é o clássico Os Assassinatos na Rua Morgue, de Edgar Allan Poe. De que forma Poe, definido por você como o último romântico e o primeiro moderno, ainda consegue influenciar a literatura policial e de mistério nos dias de hoje?
Poe deu uma contribuição decisiva, fundamental, para a criação dos três gêneros mais populares de hoje: o policial, o terror e a ficção científica. Em todos eles percebemos essa oscilação entre impulsos primitivos (a crueldade, o medo, a estranheza diante do desconhecido, o instinto de sobrevivência) e a racionalidade, o intelecto. A obra de Poe se divulgou principalmente através de seus contos, que são traduzidos e lidos por jovens no mundo todo. Ele é lido muito cedo, impressiona os leitores numa época muito vulnerável, e quando alguns desses leitores se tornam escritores (cineastas, desenhistas de HQ, etc.) essa influência transparece. Paul Valéry chamava a atenção para o fato de que até então os escritores escreviam apenas para exprimir suas próprias emoções, e Poe foi o primeiro que teorizou (em “A Psicologia da Composição”) a necessidade, a importância e a metodologia de prever e desencadear emoções no leitor. E isso á uma característica da literatura de hoje: escrever pensando no que o leitor vai entender, vai perceber, vai sentir.
4. A Aventura da Faixa Malhada, conto com Sherlock Holmes, é outro clássico que integra a antologia. Como você vê a popularidade de Sherlock intocável mesmo após 134 anos de sua primeira aparição? Qual é a magia das histórias com Holmes?
Acho que li Sherlock Holmes pela primeira vez quando o antigo “Almanaque do Correio da Manhã” publicou O Signo dos Quatro; depois li a série inteira, a partir de Um Estudo em Vermelho. Holmes tem o encanto imprevisível da pessoa que é mais inteligente do que nós, e tem idéias que não tivemos, pensamentos que não nos ocorreram, etc., mas que, uma vez explicados, revelam ser óbvios. Ele surpreende, mas ele confirma. Ele não é incompreensível, muito pelo contrário. De certa forma ele é uma figura paterna, um pouco distante, mas benigna – sempre vejo Watson, psicologicamente, como uma espécie de filho garoto se maravilhando com a sabedoria, a esperteza e a coragem do pai adulto. Como herói literário ele não é um intelectual inacessível, como muita gente o retrata. Quem é assim é o cavalheiro Dupin, de Edgar Poe, que lhe serviu de modelo (Conan Doyle admitia esse fato óbvio). Dupin é um cavalheiro meio vagaroso, sedentário, trancado em casa, lendo livros obscuros, e às vezes sai de noite para dar um passeio pela vizinhança. Sherlock Holmes é um atleta, pratica o boxe (o filme com Robert Downey Jr. exagerou um pouco esse detalhe, mas está nos livros), arromba casas, usa revólver (embora não mate ninguém), pula muros, persegue bandidos em lanchas no Tâmisa, disfarça-se para espionar em lugares perigosos… Tem esse lado de herói de folhetim de aventuras, um lado muitas vezes ignorado pelos que o criticam. Ele não é uma “máquina pensante” apenas, é um vigoroso homem de ação.
5. Sheridan Le Fanu é tido como um dos precursores das histórias góticas, porém seu nome não se manteve tão popular quanto outros na história (como Bram Stoker e o próprio Conan Doyle). Por que isso acontece? E qual a importância deste autor para a literatura?
Estou começando a conhecer melhor a obra de LeFanu, graças a duas compilações preciosas do grande pesquisador Everett F. Bleiler: Best Ghost Stories (Dover, 1964) e Ghost Stories and Mysteries (1975). O próprio Bleiler se espanta com o fato de suas obras não serem mais reeditadas na Europa e nos EUA. Ele tinha uma vasta cultura, inclusive das narrativas folclóricas da Irlanda; usava episódios reais como base para seus contos, escrevia com riqueza de detalhes e descrição convincente tanto das cenas de ação e aventura quanto dos pensamentos íntimos dos personagens. Bleiler comenta que na obra de Le Fanu a proporção de histórias de mistério para histórias de fantasmas é da ordem de cinco para um. A sobrevivência da obra de um autor depende apenas disso, de pessoas que tomem a iniciativa de publicá-las novamente, para que não desapareçam. Pelo que pude pesquisar, LeFanu teve publicados no Brasil apenas Carmilla e A Estalagem do Dragão Voador, além de contos isolados. Merece ser mais traduzido.
6. Crimes Impossíveis faz parte da Biblioteca Pessoal de Braulio Tavares. Como surgiu esta iniciativa e quais outras antologias podem surgir no futuro a partir desta experiência?
Esta foi uma ideia de Sandra Abrano, da Editora Bandeirola, quando pensávamos na possibilidade de uma série de antologias, como as que fiz para a Casa da Palavra anos atrás. Uma biblioteca pessoal é sempre algo único, não há duas bibliotecas iguais. Aqui no Rio de janeiro frequentei durante algum tempo a OLAC, Oficina Literária Afrânio Coutinho, onde se ministravam muitos cursos, e era dentro da biblioteca deixada por ele. A biblioteca pessoal de José Mindlin foi doada à USP. A biblioteca pessoal de Julio Cortázar foi digitalizada e pode ser consultada via web. O trabalho de antologista depende sempre de sua biblioteca pessoal, mesmo sendo hoje possível consultar milhares de obras pela web. Os livros que o autor tem em casa foram lidos 30 anos atrás, 40, 50 anos atrás. Fazem parte da vida, não é pesquisa fria. Nas minhas antologias procuro sempre incluir contos que têm uma ressonância emocional em mim, ressonância que espero ser capaz de produzir no leitor. Eu li vários contos de “Crimes Impossíveis” antes dos quinze anos. Outros descobri ano passado durante a pesquisa: os de Wallace, Le Fanu, L. Frank Baum. Uma antologia precisa ter essa elasticidade, esse movimento entre a memória afetiva e o presente imediato. Quando fiz antologias para a Casa da Palavra (entre 2003 e 2014) anotei centenas de contos, dezenas de esboços de seleções temáticas. Alguns desses projetos já estamos encaminhando para saírem a partir deste ano e do ano que vem.
Jornalista. Trabalha com curadoria de informação, gestão de mídias sociais e criação de conteúdo digital. Em 2014, lançou o e-book “Os Maiores Detetives do Mundo” (Chris Lauxx). Contato: analaux@gmail.com
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