Os impunes, de Richard Price, é um dos melhores lançamentos do gênero em 2017

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Há dois nomes na capa de Os impunes (Companhia das Letras, 432 páginas). O primeiro, Richard Price, designa o respeitado autor norte-americano de romances como Vida vadia, Freedomland e Clockers (já lançados no Brasil, mas esgotados no momento, ao que parece) e de roteiros de filmes como “A cor do dinheiro”, dirigido por Martin Scorsese, e séries premiadas como “The Wire” e a recente “The Night Of”. O segundo nome é Harry Brandt, pseudônimo sob o qual ele decidiu lançar seu romance mais recente, que, dois anos depois, chega às prateleiras brasileiras.

O porquê dessa decisão é bastante curioso. Price é conhecido por romances policiais grandes e caudalosos, onde a investigação se confunde com o retrato de grandes cidades americanas e suas tensões sociais, uma das razões pelas quais é celebrado pela crítica especializada. Harry Brandt surgiu de seu desejo de escrever algo mais curto, direto e até mesmo comercial, orientado pela trama. O pseudônimo destacaria o novo romance de suas obras anteriores, estética e tematicamente mais complexas.

A estratégia não deu muito certo. Como diz a matéria do New York Times, Richard Price produziu um livro de Richard Price. Mesmo tentando se ater às regras do gênero e entregar uma história mais convencional, “tudo parecia implorar por mais complexidade”. Assim, o produto final que chegou às livrarias tinha quatrocentas páginas, o estilo do autor impresso em cada uma delas. Do plano inicial, vingou apenas o uso do pseudônimo, embora de forma mais honesta, deixando claro quem era o homem por trás do nome desconhecido.

Em Os impunes, acompanhamos o policial Billy Graves, 42 anos, responsável pelo turno da noite numa delegacia de Nova York. Um cargo estressante e nada glamouroso, que pouco lembra sua carreira nos anos 1990, quando Billy teve seus dias de glória ao fazer parte dos Gansos Selvagens, grupo composto por policiais jovens e dispostos a correr riscos, unidos por uma feroz lealdade. O que parecia o prenúncio de uma grande trajetória vai por água abaixo quando, por acidente, Billy acaba baleando um garoto de dez anos em um tiroteio. A partir daí, passa para o lado menos promissor da Polícia de Nova York. Billy é o único dos Gansos Selvagens que ainda não se aposentou.

Cada um desses policiais veio a se tornar detetive e todos carregam uma obsessão particular: casos de homicídio não solucionados oficialmente, mas cujos culpados são conhecidos. Esses assassinos que a Justiça deixou escapar são por eles chamados de Brancas, em referência à baleia perseguida pelo Capitão Ahab em Moby Dick. Quando a Branca de um de seus velhos amigos aparece morta numa movimentada estação de metrô durante o turno de Billy, as engrenagens de sua vida monótona começam a se mover.

Em paralelo, se desenrola a estranha narrativa de Milton Ramos, detetive latino cuja vida é uma longa sucessão de acontecimentos brutais. Por motivos que vão aos poucos sendo revelados, Ramos credita a uma única pessoa a tragédia que abalou sua adolescência e o transformou no homem que é – a enfermeira Carmen Graves… esposa de Billy, contra quem sua fúria, guardada durante anos, está prestes a se voltar.

Essa foi minha primeira experiência com a literatura de Price, a quem conhecia apenas pela reputação. Qualquer texto a seu respeito destaca o talento para diálogos e personagens duros, talhados pela violência das ruas, bem como o olhar aguçado sobre as dinâmicas socioeconômicas que envolvem a criminalidade urbana; também diz que ele não deixa de lado os aspectos narrativos mais básicos, criando tramas ágeis e arcos bem definidos, e que seu uso da linguagem é eficiente e desenvolto.

 

A julgar por Os impunes, todas estas credenciais são mais do que merecidas. Estamos diante de um autor que consegue extrair do gênero policial o que ele pode oferecer de melhor.

 

Nossas janelas para o universo do livro são Billy e Milton. Passamos mais tempo com o primeiro, o típico personagem que, nas mãos de um escritor menos habilidoso, poderia acabar como um lugar comum ambulante – o tira decadente e traumatizado cuja vida é uma bagunça. Não é o caso aqui. O casamento de Billy não está em frangalhos por causa do trabalho; ele não abusa do álcool nem é um pai ausente. Na medida do possível, Billy procura levar uma vida saudável, cuidar da família, cumprir suas obrigações. Um homem pacato que deixou seus dias agitados no passado.

Sua rotina é lidar com todo o tipo de confusão ocorrida após a meia-noite: brigas entre gangues, o desaparecimento da medalha de um atleta aposentado, assaltos a joalherias, um homem que deixou a filha bebê cair no chão. A maneira como Price retrata essas ocorrências, pinçando-as como que de modo aleatório entre as tantas que uma cidade como Nova York oferece, expõe o caráter episódico e enfadonho da existência de Billy, onde tudo é mais ou menos igual noite após noite. Em termos de desenvolvimento do personagem, é admirável que, com pouco mais de vinte páginas, o autor consiga evocar um senso de mesmice estabelecido ao longo de anos. Assim, o assassinato no metrô salta aos olhos como um acontecimento de impacto.

O conceito das Brancas emoldura o tema central do romance: a obsessão. Claro, detetives com fixação pela captura de um assassino não são novidade, mas Price aqui consegue elevá-los do clichê e transformá-los em figuras convincentes e complexas. À medida que a narrativa avança e vamos conhecendo mais e mais Pavlicheck, Whelan, Redman e Yasmeen – os Gansos Selvagens –, entendemos que a impunidade de suas Brancas não os afeta por uma questão de orgulho ferido ou vaidade; não se trata de pegar o criminoso para provar algo a alguém. A liberdade desses assassinos os fere por refletir a loucura de um mundo sujo e violento, evidenciando que há coisas que simplesmente fogem ao controle, sofrimentos que jamais serão solucionados mesmo que empreguem toda sua força e astúcia para isso.

Obsessão também é o que governa Milton Ramos, homem cuja presença por si só inspira medo e desconfiança, como se exalasse uma aura de mau-presságio. Quieto, nada simpático e não muito eficiente como detetive, Ramos parece viver uma espécie de vazio expectante, nada dando sentido a sua existência, até que, por acaso, avista Carmen num hospital.

Price tem o cuidado de mostrar muito pouco de Ramos, um vislumbre de cada vez, de modo que, quando entendemos de todo a razão de seu ódio por Carmen, tememos por ela. Seria fácil torná-lo um vilão, mas, ao mesmo tempo que o autor o constrói como um personagem assustador, também há nele muito de trágico. É doloroso ver que suas tentativas de refrear a própria natureza terminam apenas por fortalecê-la. Seus processos mentais são legitimamente perturbadores, mas é difícil não captar alguma lógica neles, o que demonstra a capacidade de Price de gerar empatia até mesmo por um homem de quem é preferível manter distância.

O melhor da leitura é perceber que o exame do tema, a partir da relação de Billy com seus amigos e de Milton com sua vingança, não eclipsa a trama e seus desdobramentos; mais do que isso: tudo é uma coisa só. A trama faz o tema emergir, e o tema nos ajuda a perceber a profundidade dos acontecimentos que constituem a trama. Falando assim pode parecer simples, mas uma composição com esse equilíbrio de elementos é muitíssimo trabalhosa e são poucas as obras em que isso funciona de verdade, tudo tão bem alinhado. Esse senso de unidade é uma das características que nos fazem reconhecer uma grande história quando nos deparamos com ela. Além de um ótimo romance policial, Os impunes é uma poderosa ficção sobre o poder do passado sobre nossas vidas, e como somos definidos pelo que nos atormenta.

Com um final que fecha a trama de maneira satisfatória e indica uma discreta faísca de otimismo, Os impunes é um dos melhores lançamentos do gênero em 2017, intrincado, divertido e envolvente.

 

* Livro enviado ao site pela Companhia das Letras.

 

 

Título: Os impunes
Autor: Richard Price
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 432
Este livro no Skoob

SINOPSE – Nos anos 1990, Billy Graves vivia seu auge. Integrava os Gansos Selvagens, um entusiasmado grupo independente de jovens policiais que investigavam os crimes das regiões mais violentas de Nova York. Porém, depois de atirar por acidente em um garoto de dez anos, o detetive ganhou fama indesejada nas manchetes dos jornais e foi confinado ao Departamento de Identificação do necrotério. Billy está agora na casa dos quarenta e cuida do turno da noite, atendendo a chamados e despachando as pendências para a equipe da manhã. No entanto, quando um dos crimes tem como vítima uma pessoa ligada ao passado de um de seus colegas dos Gansos Selvagens, o policial vai reviver os velhos tempos numa busca por vingança e redenção.

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7 comentários em “Os impunes, de Richard Price, é um dos melhores lançamentos do gênero em 2017”

  1. Muito boa a resenha. Parabéns!
    Aguçou a minha curiosidade em ler o livro.
    Estou no meio da leitura de Vida Vadia, o qual tenho achado bem interessante. Confesso que só não gostei muito do formato adotado pelo autor em colocar todos os diálogos entre aspas, acho que fica muito carregado.
    Como também faço meus “rascunhos”, notei algo em comum com o estilo de Processo: nas minhas histórias uso muitos diálogos entre os personagens (o que já me rendeu tanto elogios como críticas).
    Valeu pela dica, Josué!
    Não deixe de avisar quando publicar o seu livro!

    1. O lance das aspas é complexo. Até onde sei, são os marcadores mais comuns para diálogo na língua inglesa (posso estar enganado, mas são muito usados, de toda forma), e algumas editoras optam por manter, não adaptando para os nossos travessões. Não me incomoda, particularmente, e é engraçado porque, como sempre li muitos livros policiais norte americanos, as aspas meio que viraram padrão pra mim. Chego a estranhar quando pego um livro e os diálogos são marcados com travessões.

      Os diálogos do Price fluem muito bem, isso é uma habilidade rara e difícil de cultivar.

      Abraços, Dennis!

  2. Comecei a ler e digo que não é muito fácil para continuar, não é difícil ou denso, apenas não é dinâmico como a maioria dos livros policiais que leio. Porém, alguém que participou de The Wire merece todos os créditos do mundo. Até o momento, vejo o livro mais como uma mini-serie de que como um livro. Leio e sinto uma pegada The Wire, algo mais complexo que 420 páginas

    1. O início é um pouco lento, é verdade. Lembro de ter sido mais fisgado pela prosa do Price do que pela trama, mas a história ganha uma pegada mais dinâmica à medida que avança, Alan. Mas concordo com você, tem algo de mini-série, sim.

      Abraços!

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